Por: ABIA
“Viva a vida!”. Essa era uma das frases mais usadas pelo escritor Herbert Daniel, falecido ha vinte anos, vítima da epidemia de Aids. Para além da louvação ao que temos de mais precioso, essa frase tinha um sentido político fundamental: combater o pânico gerado pelo surgimento da epidemia esclarecendo que Aids não é sentença de morte. Embora para ele e muitos outros ativistas históricos a Aids tenha sido de fato a causa do falecimento, foi na doença que Daniel se fortaleceu como cidadão para enfrentar o que chamava de morte civil. Uma morte que acontece ainda em vida e representa a perda de direitos e cidadania devido a uma determinada condição.
No caso dos doentes de Aids, a morte civil significava ouvir de médicos que o governo não deveria gastar dinheiro com medicamentos, pois não havia salvação; significava ser discriminado nos serviços de saúde; significava sofrer a violência da desinformação; E finalmente, quando a morte física enfim chegasse, significava não ter ninguém para carregar o caixão por medo de contaminação. Em suma, a morte civil colocava o doente de Aids na condição de pária, de peso para a sociedade.
Hoje, passados vinte anos da morte de Herbert Daniel, podemos olhar pra trás e ver que muito foi feito para combater a morte civil. Pessoas vivendo com HIV/Aids se mobilizaram e criaram organizações para preencher as lacunas em aconselhamento, informação e acolhimento. Essas ONGs criaram materiais informativos que se tornaram referência, inclusive para profissionais de saúde; especializaram-se para influenciar diretamente nas pesquisas científicas e nas políticas de acesso a medicamentos; ajudaram a captar recursos para o controle da epidemia e moldaram, com muitos debates, protestos e campanhas, o que hoje é visto como um dos melhores programas de Aids do mundo. Tudo isso partiu de uma opção pela vida e da defesa do tratamento como sinal de respeito à dignidade e à cidadania das pessoas vivendo com HIV/Aids,fortalecendo assim o combate ao estigma associado à doença.
Hoje, no entanto, ao contrário do que era de se esperar, o conceito de morte civil precisa ser urgentemente revisitado por todos aqueles envolvidos na luta contra a Aids, e na luta pela própria democracia. Pois à semelhança do vírus HIV, que adquire resistência à medicação ao longo do tempo, vemos emergir uma resistência às práticas de controle social no campo do HIV/Aids. Os espaços de diálogo conquistados por meio da mobilização estão abalados por um crescente silêncio que sufoca as vozes críticas. Esse processo de silenciamento do controle social passa pela cooptação dos movimentos sociais, pela omissão frente à atual debilidade institucional e financeira de muitas dessas ONGs que fizeram história no combate à Aids, pela falta de transparência do governo em temas caros aos ativistas de Aids, como a produção de medicamentos, e por episódios vergonhosos de censura, inclusive de campanhas de prevenção voltadas para o público gay, população mais afetada pela Aids hoje no Brasil.
Assim percebemos que a morte civil avançou para uma nova fronteira e ameaça um princípio fundamental do SUS: o controle social, que é a base para que ONGs-Aids tenham papel ativo na definição de políticas públicas. Como dizia Herbert Daniel, a morte civil não era condição exclusiva dos doentes de Aids, também padeciam dela as crianças abandonadas, aqueles que recebem salário mínimo e demais excluídos. Sabemos que o controle social, no caso da Aids, foi uma grande arma contra a exclusão. Desvalorizar esse princípio é um golpe duro em todas as conquistas já feitas e na própria democracia; e um passo para que a Aids, que antes era causa, seja cada vez mais uma conseqüência da exclusão social.
Na primeira frase do discurso proferido na Abertura da Assembléia Geral da ONU, realizada em 2011, a Presidente Dilma Roussef ressaltou que pela primeira vez na história das nações unidas uma voz feminina inaugurava o debate geral. Dilma comentou que na língua portuguesa duas palavras especiais para ela pertencem ao gênero feminino: Coragem e sinceridade. Para Herbert Daniel, que inclusive foi contemporâneo de Dilma na militância contra a ditadura em Belo Horizonte, uma outra palavra feminina fazia toda a diferença nas lutas políticas: Solidariedade. Na luta contra a Aids, as pontes de solidariedade foram e são muito importantes, mas de nada adiantarão se crescerem os abismos de silêncio, essa palavra masculina pela qual o governo Dilma tanto tem prezado.
Por Veriano Terto Jr – coordenador Geral da ABIA – Assoc. Bras. Interdisciplinar de AIDS
E Felipe de carvalho – assessor de projetos da ABIA – Assoc. Bras. Interdisciplinar de AIDS.
Leave A Comment