Por: GTPI

No dia 14 de maio, a ANVISA deferiu o registro sanitário do medicamento Truvada (combinação de Tenofovir + Emtricitabina) e escreveu assim mais um capítulo de um caso que envolve questões éticas, falta de transparência, e novas possibilidades de enfrentamento da epidemia de Aids. Desde 2008, organizações da sociedade civil tentam monitorar esse pedido de registro e esbarram na falta de informação. Agora, com o medicamento aprovado para comercialização no Brasil, emerge uma nova demanda por informações e esclarecimentos.

O Truvada atrai interesse especial das pessoas vivendo com HIV/AIDS e das organizações que trabalham com o tema no Brasil por dois motivos. Primeiro porque o medicamento vem sido usado em combinação com outros medicamentos em ensaios no Brasil nos últimos anos, para tratamento de pessoas com HIV. Por isso, uma vez que pacientes brasileiros participaram de ensaios clínicos, tornar o medicamento disponível no país é antes de tudo uma obrigação ética da empresa que fabrica o medicamento. Nesse sentido, o pedido de registro sanitário é o modo de identificar se essa obrigação está sendo cumprida, pois é o primeiro passo para que a população tenha acesso ao medicamento. Em 2009, o Fórum de ONGs Aids de São Paulo enviou uma carta à empresa Gilead, fabricante do Truvada, questionando se o pedido de registro havia sido feito, pois naquele momento havia sete ensaios clínicos sendo realizados no Brasil que envolviam o Truvada e também o Emtriva (medicamento à base de emtricitabina, um dos componentes do Truvada). A empresa respondeu que estava preparando os documentos para fazer o pedido de registro.

No entanto, até o dia 14 de maio de 2012, quando foi concedido o registro, não havia como confirmar se esse pedido havia sido feito pela empresa ou não, pois a ANVISA não disponibiliza informações sobre pedidos de registro em andamento, apenas informa quando há concessão ou indeferimento. Na tentativa de contornar essa lacuna, o GTPI escreveu ofícios para a ANVISA cobrando informações sobre o status do registro do Truvada, mas não obteve respostas satisfatórias. Seria de grande valia para os usuários do sistema de saúde se essa informação estivesse disponível, seguindo os preceitos constitucionais da publicidade dos atos administrativos e as obrigações de transparência ativa, estabelecidas na lei 12.527, conhecida como Lei de Acesso à Informação .

O segundo motivo pelo qual o Truvada é considerado importante pelo movimento de AIDS diz respeito à possibilidade de utilizá-lo como ferramenta de prevenção. Resultados de estudos clínicos, inclusive daqueles realizados no Brasil, vêm demonstrando que, para além da indicação para o tratamento da infecção pelo HIV, o medicamento também se mostrou eficaz para Profilaxia Pré Exposição (PREP) . Em 2010, por exemplo, um estudo clínico realizado no Brasil, Estados Unidos e África do Sul mostrou que doses diárias do Truvada podem diminuir em até 73% o risco de infecção pelo HIV.

O debate sobre os benefícios do tratamento com antirretrovirais como forma de prevenção da transmissão é amplo e possui diversas ramificações, mas diante desta aprovação recente do Truvada no Brasil, cabe ao governo e a sociedade estabelecerem um debate sobre como este medicamento pode se tornar um instrumento eficiente que integre as políticas de prevenção da transmissão do vírus HIV já existentes e postas em prática no país. De acordo com matéria publicada no dia 12 de maio de 2012, no jornal o Estado de São Paulo o Departamento de DST Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde tem debatido o tema do uso de antirretrovirais para prevenção, mas ainda não tem nenhuma indicação definida.

A incorporação deste medicamento como forma de renovar e ampliar estratégias de enfrentamento da epidemia é um debate ainda incipiente, mas alguns avanços têm sido observados no cenário internacional. Recentemente, o Comitê Consultivo sobre Drogas Antivirais, que aconselha a Agência Americana de Drogas e Alimentos (FDA, na sigla em inglês), aprovou o uso do Truvada para profilaxia pré-exposição em grupos de risco. Se a FDA seguir o conselho do comitê no mês que vem, o Truvada será a primeira droga aprovada para uso em tratamento e prevenção. As pesquisas que embasaram esta recomendação, uma das quais realizada no Brasil, não existem apenas para promover descobertas científicas, mas também para operacionalizar as novidades obtidas de modo que os benefícios sejam colocados à disposição das pessoas vivendo com HIV/AIDS, especialmente aquelas que participaram dos ensaios clínicos.

O fato de o Truvada ser a única combinação realmente testada para uso em profilaxia pré exposição coloca este medicamento em uma posição chave nas políticas voltadas para essa estratégia de prevenção. No entanto, para que qualquer estratégia de profilaxia pré-exposição seja sustentável, a discussão a respeito do preço se faz necessária. Como experiências anteriores comprovam, a dependência de uma única fonte produtora pode afetar a disponibilidade dos medicamentos, principalmente devido à prática de altos preços. Felizmente, existem alternativas para impedir que o preço se torne uma barreira ao acesso. Uma dessas alternativas é impedir que o medicamento seja protegido por uma patente imerecida, pois a proteção patentária confere direitos de monopólio. Em relação ao Truvada, o Brasil já tem meio caminho andado, pois os princípios ativos que compõem o medicamento (Tenofovir e Emtricitabina) não são patenteados. A Gilead até tentou patentear o tenofovir, mas teve seu pedido negado e o medicamento, que antes era vendido pela empresa americana a preços altos, é hoje produzido pelo laboratório público FUNED por preços mais baixos.

Em 2004, no entanto, a Gilead fez um pedido de patente para o Truvada®, ou seja, a empresa pretende proteger a combinação de Tenofovir e Emtricitabina. Este pedido ainda está em análise no INPI, mas assim como aconteceu durante a análise do pedido de patente do tenofovir, o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip) apresentou um subsídio ao exame, no qual argumenta que, principalmente por se tratar de uma combinação de produtos já conhecidos, o pedido de patente do Truvada não cumpre dois dos três requisitos para a concessão de patentes: atividade inventiva e novidade. Caso a patente seja negada pelo INPI, o Brasil não ficará dependente da Gilead para oferecer essa tecnologia para sua população.

Ao longo dos últimos anos, grupos da sociedade civil acompanharam os ensaios clínicos do Truvada, cobraram o registro e colaboraram para que a análise de patentes favoreça o interesse público. É, portanto, de total interesse desses grupos que um debate aberto e amplo seja voltado para questões como: O medicamento será incorporado no Consenso? Como? Existe alguma previsão de integrar esse medicamento em estratégias de prevenção? Qual preço sugerido pela Gilead para eventual aquisição desse medicamento e quais são as alternativas para reduzi-lo? Esperamos que o Ministério da Saúde não exclua a sociedade deste debate.