Por: Valor econômico

Valor Econômico03/06/2012

Recorrer a um banqueiro para restaurar a reputação de uma atividade é decisão inusitada nos tempos atuais de duras críticas a tudo o que vem do setor financeiro. Mas foi o que fez o conselho de administração do Fundo Global de Luta contra a Aids, Tuberculose e Malária, maior financiador internacional de saúde pública, superando a Organização Mundial da Saúde (OMC). Gabriel Jaramillo, nascido na Colômbia e cidadão brasileiro, com mais de 35 anos em posições executivas no setor financeiro, é quem está comandando uma "transformação enorme" no fundo, que tem financiado US$ 22,6 bilhões para mais de mil projetos em 140 países. "O fundo é o banqueiro da guerra contra essas doenças", diz o executivo. O aporte que estima trazer é de reforçar a prática de gestão vinda do setor privado: "A comunidade científica é sofisticada, mas nem sempre tem boas práticas de gestão. Temos condição de introduzir conceitos do setor privado, de eficiência, rigor nos números e nos objetivos".

Em tempos de crise econômica global, isso atende a diretrizes dos doadores da mais importante das parcerias entre público e privado que proliferam na área da saúde mundial.

Criado em 2002, o fundo global acumulava recursos até ser atingido por um escândalo de corrupção em janeiro de 2011. A Associated Press publicou uma notícia estimando que dois terços de algumas subvenções ("grants") eram perdidas em casos com corrupção. Citou faturas falsas, treinamentos inexistentes e outros abusos comandados por Ministérios da Saúde de vários países africanos.

O fundo reconheceu que descobrira o "uso indevido" de US$ 34 milhões em 9 de 33 países investigados. Os principais casos ocorreram em Mali, Mauritânia, Djibuti e Zâmbia. Irritados com o que consideraram complacência, vários países doadores suspenderam o desembolso das somas prometidas. Isso coincidiu com o aperto nas contas públicas de boa parte desses países em crise.

O conselho de administração do fundo reagiu criando uma comissão de alto nível para analisar seu funcionamento e os mecanismos de financiamento. Uma das sugestões foi submeter o então diretor-executivo, o francês Michel Kazatchkine, a ter ao seu lado um gerente-geral, com mandato de um ano. O cargo foi atribuído a Gabriel Jaramillo, um dos membros da comissão.

Kazatchkine não gostou da ideia e abandonou o cargo em janeiro, sob pano de fundo de uma briga diplomática entre seu país, a França, os Estados Unidos e o Reino Unido, segundo fontes próximas do caso. Em fevereiro, o comando saiu das mãos de um médico originário do setor humanitário e passou para um executivo financeiro e discurso empresarial.

Em três décadas de carreira, Jaramillo passou por instituições como Marine Midland Bank, Citibank, presidência do Banco Santander no Brasil e se aposentou como "chairman" do Sovereign Bank (EUA) em janeiro do ano passado. Ao ser nomeado, o conselho de administração destacou que ele era "reconhecido como um administrador com integridade impecável".

Para Jaramillo, combater aids, malária e tuberculose é "negócio espetacular em termos financeiros e em desenvolvimento econômico"

"Um ano atrás eu nem sabia que o fundo existia", diz o executivo. "Mas o fundo teve problema de imagem e desconfiança, participei da comissão indo aos países, vendo o que funcionava bem ou não. Fizemos recomendações e nunca pensei que tinha de implementá-las. Se eu soubesse, teria sugerido menos", completa, rindo.

A ideia é melhorar a eficiência e o rendimento do fundo. Isso inclui controle maior do dinheiro e mais exigência para projetos terem o resultado que se espera. A restruturação administrativa causou dezenas de demissões.

"Vamos realmente diferenciar o fundo de outras parcerias (público-privadas), porque a pizza está menor e os doadores estão mais exigentes", afirma. Os doadores querem resultados para justificar esses investimentos diante de seus cidadãos.

"O fundo global foi criado há dez anos num momento em que havia uma generosidade enorme dos países desenvolvidos e sentido de urgência sobre a incidência de aids, malária e tuberculose", informa.

Agora, com a crise econômica global, o futuro será diferente. Os países desenvolvidos estão "estressados" financeiramente e não há mais a urgência contra as doenças. A generosidade é mais exigente "para que o número de vidas salvas a cada dólar seja maior".

Jaramillo tenta convencer os doadores públicos e privados de que a tarefa vale a pena. "O retorno é enorme, melhor do que construir estradas ou portos. Falo isso como banqueiro. Sei quando há um bom negócio na frente. Combater aids, malária, tuberculose é um negócio espetacular em termos financeiros e em desenvolvimento econômico."

Pelos seus cálculos, os bilhões de dólares do fundo já permitiram salvar 10 milhões de pessoas. "São 100 mil vidas salvas por mês e, se melhorarmos a eficiência em 10%, são 10 mil a mais", acrescenta. Estima que o número de camas liberadas com a melhora de pessoas afetadas pelas doenças represente a construção "de 10 mil hospitais".

O fundo global só desembolsa os recursos em função dos resultados. O país elabora programas baseados em suas prioridades e o fundo assegura o financiamento, dependendo do desempenho. A ideia desse tipo de financiamento foi desenvolvida nos anos 1970 nos EUA para melhorar a qualidade da educação. O financiamento era vinculado a resultados acadêmicos obtidos, em vez de levar em conta o tamanho da instituição, por exemplo.

Jaramillo revela que o fundo investirá US$ 8 bilhões nos próximos 18 meses – quase o dobro de todo o orçamento da OMS. Mais da metade, US$ 5 bilhões, vai para a África, maior foco das doenças. Em alguns países, a subvenção do fundo supera o orçamento nacional de saúde.

Segundo ele, apesar da crise, o fundo está atraindo de volta os doadores. Os EUA prometeram US$ 1,6 bilhão para este ano. O Brasil já não é recipiente dos recursos, pois emergentes não são mais elegíveis para ter os financiamentos. Mas o país tampouco contribui. O máximo que contribuiu no passado foi US$ 150 mil no total durante três anos. Mas o executivo tem esperanças: "O Brasil poderia enviar um cheque, seria bem-vindo. Eu adoraria ver o Brasil aportando

[dinheiro] em momentos difíceis". Ele acha que o fato de o país não precisar de dinheiro já é positivo, porque deixa os recursos para os que necessitam mais.

Entre os filantrópicos, a Fundação Bill & Melinda Gates se comprometeram com US$ 1,4 bilhão até agora. Junto ao público, a iniciativa chamada RED já rendeu US$ 190 milhões. Trata-se de uma marca criada pelo cantor de rock Bono, vinculada a produtos e serviços da Apple, GAP e Starbucks, com parte do faturamento indo para o fundo combater aids.

O combate será longo. Nada menos de 600 mil pessoas morrem de malária todo ano. E 350 mil crianças nascem com aids e morrem. Dois objetivos são claros: zero morte de malária e zero transmissão de aids da mãe para o filho em 2015. "Aí vamos ter a primeira geração global sem aids", diz Jaramillo.

Além do fundo global, outras parcerias público-privadas se destacam, como a Aliança Gavi, para a compra de vacinas, e a Unitaid, para adquirir remédios.

A proliferação de parcerias público-privadas é apreciada, mas complica também a governança do sistema global de saúde Para certos negociadores de países em desenvolvimento, isso traz uma preocupação: na OMS, única entidade com poder normativo, 194 países discutem quais são as prioridades globais da saúde. Já nas parcerias público-privadas, os doadores têm mais espaço para estabelecer as prioridades.

A OMS sofre dificuldade crescente para financiar seus programas. Só 25% do orçamento vem de contribuições regulares dos países, e desse dinheiro 60% é para pagar salários. Sobra muito pouco. Há também a parte de contribuições voluntárias, mas condicionadas. Um país financia um projeto que vem "carimbado" com o destino e as exigências. Por exemplo, de que o dinheiro de um projeto de combate à aids não será para comprar preservativos e, sim, para campanhas de abstenção.

A OMS depende cada vez mais também de doador privado: em 2010-2011, seu principal doador voluntário não foi um país, mas a fundação de Bill Gates, com US$ 445,1 milhões. Sozinho, sustenta 10% do orçamento da organização global. Os EUA vêm em seguida com US$ 438 milhões. As contribuições voluntárias dos Brics – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – somaram US$ 18 milhões.

Ameaçada de esvaziamento, a OMS discute uma dolorosa reforma para definir novos instrumentos de financiamento e governança

O fundador da Microsoft é hoje provavelmente a pessoa mais poderosa na área de saúde, mais do que governos ou outras entidades, financiando pesquisas, ONGs, programas governamentais etc. Sem surpresa, Gates discursou na Assembleia Mundial da Saúde de 2011 diante de 1.800 delegados, recomendando aos ministros que invistam "nas vacinas para salvar 10 milhões de vidas até 2020". Sua influência é tão grande que a pergunta que se faz ironicamente na área de saúde é: "Are you also funded by Gates Foundation?" (você também é financiado pela Fundação Gates?).

Ameaçada de esvaziamento, a OMS discute uma dolorosa reforma para definir novos instrumentos de financiamento e governança. A ideia é ter orçamento mais previsível e mais flexível e tentar assegurar papel coordenador na política global do setor.

Mesmo se não se opõem a parcerias público-privadas, especialistas de várias ONGs, incluindo Patrick Durrich, da ONG suíça Declaração de Berna, veem risco de a reforma minar, mais do que reforçar, o mandato da organização internacional. Por exemplo, ao abrir a porta para entidades privadas tomarem parte no estabelecimento de políticas globais no setor.

Margareth Chan, diretora-geral da OMS, propôs a criação de um Fórum Mundial da Saúde a partir de novembro que reunisse todos os atores da saúde, públicos e privados. Para Tido von Schoen-Angerer, que foi diretor da campanha por acesso aos medicamentos na organização Médicos Sem Fronteiras , a influência da indústria farmacêutica sobre a política sanitária da OMS pode aumentar muito. O jornal "Le Temps", de Genebra, indagou em manchete se a OMS está ameaçada de privatização.

"Integrar a regulação de bens públicos na saúde e a implementação eficiente dos programas nos países que mais precisam é o grande debate hoje na governança do setor", diz o economista Humberto Laudares, especialista na área.