Por: Fenafar
Fenafar – 24/01/2014
A importância da categoria farmacêutica na luta contra as patentes foi reafirmada durante o Fórum Social Temático 2014, em debate que discutiu a propriedade intelectual, a Lei de Patentes e as mobilizações para combater as corporações de saúde, no dia 22 de janeiro. O evento aconteceu na na Câmara Municipal de Porto Alegre, sede das 50 atividades do FST 2014.
As patentes são uma forma de proteção à propriedade intelectual por meio de títulos temporários concedidos pelos Estados que permitem que o titular de uma invenção possa explorar sozinho, ou com outros licenciados, o seu invento. Uma invenção só pode ser patenteada mediante o cumprimento dos requisitos de patenteabilidade: novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. No entanto, regras de propriedade intelectual excessivas, como a de patentes, monopolizam o setor da saúde e limitam o acesso de todos.
A farmacêutica Jussara Cony, vereadora em Porto Alegre, frisou a relação da propriedade intelectual com a soberania nacional e os espaços de atuação dos movimentos sociais. “É a Fenafar que vem promovendo essa discussão. São 40 anos de luta da entidade. Nos mobilizamos na 8ª Conferência Nacional de Saúde, 1986, depois para a realização da Conferência Nacional de Assistência Farmacêutica, que ocorreu 17 anos depois. Depois, com o ministro Temporão, atuamos para a concretização do complexo industrial de saúde, estratégico para o nosso país”, completou Jussara.
Para Ronald Ferreira dos Santos, presidente da Fenafar que mediou a Mesa, é fundamental retomar o debate sobre o modo de produção de bens materiais e imateriais – a produção do conhecimento. “A forma como a riqueza, material e imaterial, vem sendo apropriada no nosso planeta gerou uma enorme desigualdade. Um levantamento recente apontou que 85 homens têm 17% da riqueza do planeta. E o ponto de partida para reverter a situação é a discussão do conhecimento, que é a principal construção coletiva que podemos fazer”, disse Ronald. Em seu discurso, ele lembrou que, na véspera da atividade, se completou 90 anos do desaparecimento Vladimir Ilitch Lenin, um dos estudiosos da forma de produção e reprodução da sociedade, tendo versado, inclusive, sobre a apropriação da riqueza produzida coletivamente pelas grandes corporações.
Também fez parte da mesa de abertura a diretora de Organização Sindical da Fenafar e integrante do comitê organizador do FST 2014, Debora Raymundo Melecchi.
Interesse comercial X interesse público
O diretor de Propriedade Intelectual da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e Suas Especialidades (Abifina), Reinaldo Guimarães, lembrou os quatro componentes da regulação das tecnologias em saúde, em diversos países, com base científica: científico, ético, sanitário e patentária. Reinaldo pontuou que todo o debate tem, de um lado, o interesse público; e do outro, o interesse comercial (que é priorizado em detrimento dos potenciais usuários desses produtos). “Há um desequilíbrio nos últimos 40 anos, onde o interesse comercial é priorizado em detrimento do interesse público dos potenciais usuários. Do meu ponto de vista, o maior problema está na questão ética, da moralidade. Em primeiro lugar, o sistema de patentes é muito velho (do século 16), mas o que conhecemos hoje nasceu no final do século 19, onde não havia ainda um mercado do consumo de massas. Em segundo lugar, é um sistema impróprio para acolher as assimetrias em acesso a medicamentos. Em terceiro, é um sistema que visa o interesse comercial”.
No país, outro centro de tensão na questão de patentes citado por ele, é o conceito de integralidade. Para ele, a judicialização da Saúde é uma consequência de uma falha de uma definição adequada sobre o que é a integralidade. “A constituição definiu o direito universal à saúde na Lei 8080, que criou o SUS
Ao final, fez um resgate das tensões entre proteção da propriedade intelectual mediante patentes e acessos à medicamentos, da negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC), entre 1975 e 1977, até os mais recentes acordos bilaterais e multilaterais de livre comércio entre EUA e outros países contendo cláusulas especificas sobre propriedade intelectual.
Em sua avaliação, a indústria farmacêutica mundial vive uma grande crise tendo em vista: a perda de patentes importantes, chamadas de blockbusters, entre 2009 e 2012; o elevado custo dos testes clínicos e a falta de estímulo à pesquisa e descoberta de novas moléculas, inibida pelo predomínio de patentes, que monopoliza o mercado e gera uma crise na “invenção”. A chamada big farma, que mobiliza quase US$ 1 trilhão, ao ano, só perdendo para o setor de tecnologia em pesquisa, vive uma tempestade perfeita em sua opinião. “Para reagir a crise, de olho em novas descobertas (moléculas), o chamado pipeline, as grandes corporações entraram no mercado de fusões e aquisições, comprando a empresa toda, o que gera demissões em massa, fechamento de empresas, reduzindo a concorrência. Além disso, deixaram de fazer todo o processo do medicamento, para compartilhar os riscos, a terceirizar os processos. Também fizeram uma campanha de descriminalização dos remédios e passaram a exercer práticas comerciais pouco éticas”, disse.
Pedro Villardi, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) da Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (Rebrip), ressaltou que foi na revolução industrial, no final do século 19, que surgiu a Convenção da União de Paris (acordo de propriedade intelectual), onde os signatários eram livres para definir quais campos e qual extensão deveriam ser concedidos para o titular de patentes. Até 1994, o Brasil não concedia patentes para produtos farmacêuticos, somente para processos, que levariam a um avanço tecnológico. “Foi o acordo de propriedade intelectual, o TRIPs, na década de 1990, com a criação da OMC, com a perspectiva de liberação comercial progressiva, que retirou essa possibilidade de os países decidirem os campos tecnológicos que seriam protegidos”, recordou Pedro. Desde então, todos os países são obrigados a proteger todos os campos do conhecimento e durante um período de 20 anos. O Brasil, de acordo com Pedro Villardi, foi precipitado ao aderir com tanta rapidez ao TRIPs, que estabeleceu um prazo de transição, até 2005, para os países em desenvolvimento. No entanto, alterou sua legislação em 1996 e passou a conceder proteção patentária para todos os campos tecnológicos, incluindo o farmacêutico, igualando-o a qualquer outra mercadoria.
Patentes pipeline
Pedro citou a mobilização das organizações para derrubar o mecanismo que instituiu as patentes pipelines. Previstas nos artigos 230 e 231 da Lei de Patentes (9.279/96) as pipelines possibilitaram, durante um ano, o depósito de patentes em campos tecnológicos para os quais o Brasil não concedia até então, de medicamentos e alimentos que já existiam, sem qualquer análise dos requisitos técnicos de patenteabilidade no Brasil, dependendo somente da concessão no país onde foi feito o primeiro depósito. Ao todo foram reconhecidas 1.182 patentes pelo mecanismo pipeline, entre elas medicamentos importantes para o tratamento do HIV/AIDS, por exemplo.
Para os ativistas da saúde, as pipelines foram prejudiciais para o desenvolvimento do país por ter imposto barreiras ao acesso universal ao tratamento, sendo o governo obrigado a negociar constantemente com multinacionais para reduzir preços. Em 2007, a pedido da Fenafar, em nome da Rebrip, a Procuradoria Geral da República apresentou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que requer a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 230 e 231.
De acordo com o GTPI da Rebrip (GTPI), entre os medicamentos patenteados via pipeline estão cinco antirretrovirais: lopinavir/ritonavir, abacavir, nelfinavir, lopinavir e efavirenz, todos distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e correspondem à maior parte dos gastos com antirretrovirais. O governo brasileiro teve um prejuízo, entre 2001 a 2007, de cerca de US$ 420 milhões apenas com a compra destes cinco medicamentos, levando-se em conta os preços mínimos fixados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Se considerados os preços mínimos dos Médicos Sem Fronteiras, o valor chega a US$ 519 milhões.
Investimento em pesquisa
Luciano Rezende Moreira, do Instituto Federal Fluminense, abordou o tema na perspectiva científica nas universidades e empresas, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a qual citou como exemplo positivo no avanço da ciência e tecnologia para o campo. Para ele, a universidade pública tem um papel importante nesse setor, mas não é o lócus mais apropriado para a inovação, mas sim as empresas públicas de pesquisa. “A universidade publica precisa se consolidar como uma instituição pública de caráter estratégico. Mas isso leva tempo”, disse, lembrando que ainda há assimetrias entre os estados e regiões brasileiras, nos investimentos em formação e capacitação técnica, com grande concentração no sudeste.
No entanto, o professor aposta nos investimentos que vêm sendo feitos pelo governo federal como uma forma de fortalecer a soberania e, sobretudo, a autonomia nessa área. “Estamos vivendo uma revolução na área técnica. O surgimento dos institutos federais com investimentos em produção e conhecimento tecnológico aplicados trarão resultados importantes. Vamos ver os reflexos disso daqui a 10, 20 anos. É um material humano que no futuro vai estar à disposição para o conhecimento, que precisa estar protegido a serviço da nação”, completou que foi presidente da Associação Naciona de Pós-Graduandos (ANPG). Ele destacando programas como o Ciências Sem Fronteiras, que, em sua visão, consolida núcleos de pesquisa, evitando a fuga de cérebros do país.
Para Luciano, “as leis de patentes devem estar a serviço dos interesses nacionais, do projeto de desenvolvimento de nação. E no capitalismo não há outra saída senão quebrar patentes, socialização do conhecimento [entre as instituições de pesquisa]”.
Com informações da Fenafar/Deborah Moreira
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