Por: O Globo
O Globo – 04/06/2014
Uma briga na Justiça entre o laboratório brasileiro Cristália e o gigante farmacêutico mundial AbbVie pode ditar os rumos e o futuro da política de tratamento universal de portadores do HIV, o vírus causador da Aids, no Brasil. Iniciada em 2009, a ação contesta a patente do medicamento Kaletra, concedida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) à americana Abbott em 2000 e que deu ao laboratório o monopólio da sua venda no país.
Associação dos antirretrovirais ritonavir e lopinavir, o Kaletra é o principal tratamento de segunda escolha — prescrito quando os remédios da chamada primeira escolha, mais antigos, não surtem efeito devido ao desenvolvimento de resistência pelo vírus — usado no Brasil. Segundo o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), coordenado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), a estimativa é de que hoje ele seja distribuído pelo Ministério da Saúde a pelo menos 73 mil dos 313 mil soropositivos que eram atendidos pelo programa do governo em dezembro de 2012, a um custo de quase US$ 50 milhões anuais.
O problema é que uma proporção cada vez maior dos soropositivos brasileiros está infectada com cepas resistentes do HIV, necessitando de medicamentos não só de segunda como de terceira linhas, ainda mais caros, o que começa a levantar dúvidas quanto à sustentabilidade financeira do programa do governo. Além disso, no fim do ano passado o Ministério da Saúde alterou o protocolo para o fornecimento dos remédios, o que deverá colocar mais 100 mil soropositivos no âmbito do programa este ano.
E é aí que a briga entre Cristália e AbbVie ganha uma relevância que vai além do simples embate entre as duas empresas, pois o resultado do processo deverá estabelecer os precedentes e ordenamento jurídico que guiarão o sistema em torno do licenciamento compulsório, popularmente conhecido como “quebra de patente”, de remédios no Brasil previsto na legislação nacional sobre o assunto. Isso porque, nos últimos anos, a simples ameaça de usar o mecanismo já era suficiente para levar os grandes laboratórios a reduzir os preços cobrados do governo. Tanto que os gastos totais com a compra de antirretrovirais pelo Ministério da Saúde recuaram de R$ 1,084 bilhão em 2009 para R$ 770 milhões no ano passado. Mas esta estratégia está perdendo força, já que quase nunca a ameaça é levada a cabo, afirma Marcela Vieira, integrante da Abia e coordenadora do GTPI.
Fiocruz é maior produtora nacional
Marcela lembra que desde a entrada em vigor na nova lei de patentes brasileira, em 1996, até hoje, apenas um medicamento antirretroviral teve sua patente de fato “quebrada”, o Efavirenz, em 2007. Então, as negociações entre o governo e o laboratório Merck para redução de seu preço fracassaram. Com o licenciamento compulsório, um genérico do Efavirenz passou a ser importado de um laboratório indiano até começar a ser produzido pela Fiocruz, trazendo uma economia estimada em mais de US$ 100 milhões aos cofres públicos até 2011.
— O custo da compra de remédios antirretrovirais pelo governo vinha diminuindo, mas esta curva começa a virar — alerta Marcela. — Teremos mais pessoas em tratamento e a incorporação de novos medicamentos, com cada vez mais pacientes saindo da primeira para a segunda e a terceira linha. Tudo isso vai resultar em uma alta nos custos que coloca em risco a sustentabilidade financeira do programa. E o pior é que não vemos isso como uma preocupação do governo. Não dá para admitir que se fale que não há problema de recursos na área de saúde no Brasil. Não estamos preocupados só com a continuidade do tratamento dos soropositivos, mas com o orçamento da saúde brasileira como um todo.
Já Hayde Felipe da Silva, diretor-executivo do Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz (Farmanguinhos), maior fornecedor público de remédios genéricos para o programa de tratamento de soropositivos, no valor de R$ 200 milhões anuais, afirma que o governo deve decidir se vai estimular a indústria nacional a investir na pesquisa e desenvolvimento de tecnologia para produção local de antirretrovirais ou continuará “refém” dos grandes laboratórios multinacionais e intermediários.
— Nosso maior problema atualmente em relação aos remédios de segunda e terceira geração é a obtenção dos princípios ativos — conta. — Isso vai exigir um grande esforço da indústria farmacoquímica, que para isso vai precisar de um cenário de estabilidade jurídica.
Visão parecida tem Ogari Pacheco, presidente do Cristália:
— Estamos lutando por um princípio. A ideia é estabelecer uma jurisprudência que vá nortear disputas semelhantes no futuro, dando segurança jurídica para todas as empresas que queiram trabalhar e investir na pesquisa e desenvolvimento para produção destas substâncias complexas no Brasil e não ver todo seu esforço interrompido por uma decisão judicial.
Em nota, o Abbvie afirmou estar “seguro que sua patente do lopinavir no Brasil foi outorgada de forma válida e em conformidade com lei brasileira”.
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