Em apelo enviado ao relator especial de direito à saúde da ONU, ongs brasileiras pedem ação imediata do governo para impedir o desmonte de mecanismo de proteção à saúde

O GTPI (Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual), coletivo de organizações da sociedade civil que defende ampliação do acesso a medicamentos, enviou hoje um apelo urgente ao Relator Especial das Nações Unidas sobre o direito à Saúde, Mr. Dainius Pūras, alegando que o direito ao acesso a medicamentos no Brasil está sob ameaça. O objetivo do apelo é fazer com que a ONU acione formalmente o Brasil lembrando-o de suas obrigações em relação ao direito à saúde e solicitando informações sobre o mecanismo conhecido como Anuência Prévia da ANVISA, que possibilita a participação da Agência no exame de patentes farmacêuticas.

A anuência prévia da ANVISA foi criada para proteger e promover o acesso a medicamentos, pois aumenta o rigor do exame, impedindo que patentes imerecidas sejam aprovadas e gerem monopólios que inviabilizam políticas públicas de acesso gratuito a medicamentos. Trata-se de uma importante medida de proteção à saúde adotada no Brasil, apoiada por grupos da sociedade civil e elogiada por organismos internacionais, especialistas e pela própria OMS. Ao mesmo tempo, é um mecanismo que desagrada empresas farmacêuticas multinacionais, interessadas em controlar o crescente mercado brasileiro por meio da obtenção de um número cada vez maior de patentes e de prazos cada vez mais longos de monopólio.

Para estas empresas, um exame mais rigoroso é um obstáculo, por isso elas tem tentado de várias formas deslegitimar e inviabilizar a participação da ANVISA. E tem conseguido. Em 2009 e 2011, a Advocacia Geral da União emitiu pareceres (opiniões jurídicas Nº 210 e Nº 337) que favorecem a tese das empresas de que a ANVISA não teria a prerrogativa de analisar se uma patente cumpre os requisitos previstos em lei. Até hoje estes pareceres enfraquecem a Anuência Prévia, pois servem de base para que empresas entrem com ações judiciais toda vez que uma de suas patentes é rejeitada pela Anvisa. ““O desmonte de um mecanismo criado para proteger o direito à saúde é uma violação de direitos humanos. O direito à saúde está acima do lucro das empresas. O Brasil precisa cumprir seu dever de garantia de acesso a medicamentos e impedir a atuação de empresas que violem os direitos humanos. É urgente que o parecer da AGU seja modificado”, afirma Marcela Vieira, advogada e coordenadora do GTPI.

Muitas iniciativas foram tomadas para reverter o efeito destes pareceres. Inclusive um apelo à ONU feita pelo GTPI em 2011, que continua em aberto e que está sendo atualizado pelo apelo enviado hoje. A ONU cobrou explicações do Brasil no final de 2011 mas nunca obteve resposta. Ainda mais grave é o fato de que diante do impasse criado pela AGU, foi criado um Grupo de Trabalho (GT) interministerial que redesenhou a interação da ANVISA com o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), órgão responsável pela análise de patentes. Mesmo após o consenso atingido por este grupo, de que a ANVISA deveria sim participar do exame de patentes farmacêuticas, os pareceres da AGU não foram revogados e o INPI adotou a prática de ignorar as decisões da ANVISA.

Neste cenário, empresas multinacionais se sentiram fortalecidas e continuaram movendo ações judiciais contra as decisões da ANVISA. A Interfarma (Associação da indústria farmacêutica de pesquisa) inclusive entrou com uma ação coletiva tentando acabar de uma vez por todas com a Anuência Prévia da ANVISA. Essa ação se baseia nos pareceres da AGU e ignora por completo as conclusões do Grupo de Trabalho Interministerial. “O absurdo desta situação é a forma agressiva como empresas estão atropelando nossa soberania e como o governo assiste a tudo isto calado”, complementa Marcela.

O apelo à ONU é uma tentativa de quebrar esta inércia, pedindo que o governo cancele os pareceres da AGU e reaja a todos estes ataques a um mecanismo que traz amplos benefícios para a saúde pública, contribui para a economia de recursos e que é uma conquista do país em relação a criação de mecanismos de defesa da saúde dentro dos acordos de propriedade intelectual.