Por: Felipe Carvalho
por Felipe Carvalho
O Artigo 229-C da lei de patentes diz claramente que “A concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos dependerá da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA”. Na tarde de terça feira (31), durante audiência pública da Comissão de Seguridade Social e Família, ficou claro como esse artigo que diante do parecer emitido pela Advocacia Geral da União (AGU) no início do ano, o futuro da anuência prévia dependerá de uma decisão muito mais política do que técnica.
Nessa decisão está em jogo o que vai prevalecer na concessão de patentes para medicamentos: o interesse público ou os interesses comerciais.
Embora tenham sido criadas inúmeras incertezas em torno da anuência prévia, na prática ela se constituiu como um mecanismo de defesa do interesse público por tornar a analise de patentes mais rigorosa. Não é por outro motivo que esse mecanismo é tido como exemplo de uma importante flexibilidade prevista no acordo TRIPS, o estabelecimento de critérios próprios de patenteabilidade por parte dos países signatários. Cabe lembrar que o Brasil é reconhecido como um dos maiores defensores do uso das flexibilidades do TRIPs.
No entanto, mais numerosos que textos de especialistas e até de organismos internacionais, incluindo a própria Organização Mundial de Saúde (OMS), elogiando e recomendando o modelo da anuência prévia, foram os processos judiciais questionando sua aplicação. Muitas empresas que viam seus pedidos aprovados pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) sendo posteriormente negados pela ANVISA recorreram ao judiciário. Ao interpretar de maneira favorável às empresas, o judiciário brasileiro gerou um grande custo para a ANVISA, tanto financeiro como político.
O atual Diretor-presidente da agência, Dirceu Barbano, que participou da audiência do dia 31, afirmou que essas ações judiciais exploraram um inexistente desentendimento entre o INPI e a ANVISA, criando um ambiente de incerteza que fragilizou o sistema patentário brasileiro. Por isso, Barbano considera o parecer da AGU muito bem vindo, na medida em que esclarece questões jurídicas que foram colocadas ao longo do tempo e colabora para a superação dessa condição de fragilidade.
O procurador da AGU presente na audiência, Antonio Martins, também baseou a defesa do parecer no argumento de que havia muita insegurança jurídica em torno da aplicação da anuência prévia. De acordo com ele, a intenção da AGU era definir até onde vai a competência da ANVISA para assim acabar com a controvérsia desta com o INPI. Talvez o único consenso entre todos que participaram da mesa na audiência foi o de que uma sinergia entre INPI e ANVISA seria desejável. A grande questão em debate, no entanto, foi se o parecer da AGU colabora ou não para este fim.
De acordo com a coordenadora do GTPI, Renata Reis, que também participou da audiência, o parecer só aprofunda a incerteza jurídica, pois estabelece um fluxo de trabalho impraticável e incoerente. Ela refere-se ao fato da AGU ter determinado que a ANVISA deve atuar dentro de sua competência legal, que é a análise dos riscos à saúde, e não deve mais analisar critérios de patenteabilidade. O diretor da ANVISA fez coro a essa interpretação, mas Renata Reis colocou o ponto fundamental ,que é o da impossibilidade da análise de riscos à saúde num documento de pedido de patente. Conforme demonstrado por ela, isso já está colocando um problema real para os examinadores da ANVISA, que não querem assumir a responsabilidade de afirmar algo que não pode ser verificado. Se a postura do examinador for negar o pedido, pode-se prever uma nova onda de ações no judiciário, mas caso ele aprove, estará cumprindo um papel meramente ilustrativo.
A solução proposta por Dirceu Brabano é que risco a saúde seja compreendido de forma mais ampla, incluindo questões de interesse público, como acesso. “Por mais que se possa considerar de uma forma mais ampla acesso como risco sanitário, eu não consigo entender objetivamente como isso vai ser feito por meio de uma anuência prévia de documento de patente.”, questionou Renata. Isso era possível no modo como a anuência prévia funcionava até então: analisando critérios de patenteabilidade e favorecendo o acesso ao impedir a concessão de patentes indevidas. Ao invés de defender a manutenção e regulamentação desse funcionamento, a própria ANVISA está valorizando um parecer problemático e tentando encontrar dentro dele um caminho muito mais tortuoso e incerto para defender o interesse público.
Diante do retrocesso que essa nova interpretação do papel da ANVISA representa, é quase uma provocação o fato da AGU colocar no parecer e ainda reforçar na audiência que a ANVISA ainda pode analisar critérios de patenteabilidade junto ao INPI, mas na forma de subsídios, que podem ser considerados ou não na decisão final do INPI. Qualquer interessado pode apresentar subsídios, inclusive o GTPI o faz com freqüência. A ANVISA não é qualquer interessado. É simplesmente o órgão do qual a concessão de patentes depende, conforme disposto no artigo 229-C da lei de patentes. É sobretudo esse verbo que o parecer da AGU subverte ao determinar que a participação da ANVISA se limite a uma análise impossível de risco à saúde e a mera apresentação de subsídios ao INPI na análise dos critérios de patenteabilidade.
Mesmo diante de tantas incoerências, o diretor-presidente da ANVISA considerou o parecer um avanço, pois “esclareceu questões fundamentais para o fortalecimento do estado na concessão de patentes”. É muito significativo, no entanto, o silêncio da ANVISA sobre as questões que o parecer não esclareceu. A principal delas refere-se ao fato de que em muitos casos, patentes negadas pela ANVISA no marco da anuência prévia não foram rejeitadas pelo INPI. É como se a análise da ANVISA tivesse sido ignorada. Esses casos ainda estão pendentes; foram aprovados pelo INPI, depois rejeitados pela ANVISA e depois paralisados devido à recusa do INPI em acatar a negativa da ANVISA em sua decisão final. Isso significa que o parecer da AGU não afeta só o futuro da anuência prévia, mas também boa parte do trabalho que foi feito no passado, na medida em que as alterações em discussão podem significar que esses pedidos sejam aprovados, jogando o trabalho da ANVISA no lixo.
Essa perspectiva traz benefício claro para as empresas que depositaram esses pedidos. Que não por acaso são as mesmas que sempre questionaram a anuência prévia por meio de ações judiciais. São essas empresas enfim as responsáveis pela tal insegurança jurídica em torno da anuência prévia, tão citada por Barbano e pela AGU como condição para emissão do parecer. Um parecer que ao afastar a ANVISA da análise dos critérios de patenteabilidade favorece ainda mais essas empresas. A pressão contra a anuência prévia prevaleceu a tal ponto que o diretor da ANVISA classifica o parecer da AGU com o mesmo termo que o governo norte-americano
Não se trata de uma decisão técnica sobre a melhor forma de interação entre INPI e ANVISA, trata-se uma decisão política de ceder ou não a uma pressão para que o Brasil subverta uma flexibilidade original estabelecida pelo país e aplaudida internacionalmente por favorecer o interesse público. A ANVISA, sobrecarregada de ações judiciais, parece disposta a jogar a toalha, mas a sociedade civil vai continuar cobrando uma posição do governo sobre o tema, pois não é a AGU que deve legislar sobre um assunto tão relevante para a saúde dos brasileiros.
Conforme sugerido pelo deputado Dr. Rosinha, que convocou a audiência do dia 31, deve ser criada uma comissão parlamentar para acompanhar o grupo de trabalho estabelecido pelo Ministério da Saúde para tentar conciliar as funções do INPI e da ANVISA sob a luz do parecer da AGU. O GTPI cobra participação da sociedade civil nesse monitoramento. Estamos de olho.