Radicalizar o discurso ou não? O drama da escassez no Brasil agravado por uma diplomacia desastrosa; o papel da Comunicação no combate à chamada epistemologia da ignorância e as estratégias para matar o conhecimento por parte do grupo político que governa o país. Estes temas estiveram presentes na LIVE realizada na tarde desta quarta-feira (10), pela Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) com o tema Políticas de Vacinas para a Covid-19.

Na abertura, o diretor-presidente da ABIA, Richard Parker pontuou que ao mesmo em que a epidemia da AIDS deu origem ao que se conhece por Saúde Global, a Covid-19 inicia sua crise e necessidade de reformulação.

“O mundo avançou pouco nas práticas políticas em favor desta Saúde Global. Sua governança que deveria ser multilateral, acabou gerando exclusões e retrocessos de caráter neocolonial. Prioriza uma gestão econômica tecnocrata em vez de uma política com base em acesso amplo, baseada nos direitos humanos”, disse Parker.

A raiz dessa inadequação, segundo o diretor, se dá pela imposição das decisões pelos países ricos que não levam em conta os problemas reais e, em consequência, não consegue apresentar visões e caminhos.

O debate na LIVE partiu da ideia de que, sem enfrentar os dilemas políticos atuais, não será possível repensar o tema da governança global em saúde, enquanto a Covid-19 segue seu curso. No Brasil, já são mais de 234 mil mortos e mais de 2.3 milhões de pessoas em todo o mundo.

Richard também enfatizou a urgência de um enfrentamento ao que chamou de “epistemologia da ignorância”, que é o contexto de negação do conhecimento pelo qual o mundo passa, em especial o Brasil, com graves reflexos no atual quadro pandêmico.

Covid-19 – A desigualdade em todos os níveis

“Aprendemos muita coisa com a epidemia de HIV/AIDS. O que poderia e o que não deveria ser feito e foram respostas criativas pelo amplo acesso que lançaram o Brasil para o destaque mundial na resposta aos HIV/AIDS”, explicou o assessor sênior para acesso a medicamentos do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), Carlos Passarelli, que abriu as apresentações.

A UNAIDS é o programa da ONU que, desde 1996 auxilia países na criação de soluções e combate ao HIV/AIDS em assistência, acesso a tratamento e redução de impactos socioeconômicos.

Além de expor a desigualdade em nível local,  com a população pobre dos países sendo a mais atingida, Passarelli destacou a total falta de conformidade das ações dos países ricos nos órgãos e mecanismos de governança global, onde deveria prevalecer o multilateralismo.

O assessor citou o COVAX, iniciativa da OMS para compra e distribuição de vacinas baseada na antecipação de procedimentos de mercado, que não está garantindo a imunização entre 20% e 30% da população prioritária em todos os países, que são números recomendados pelo Marco Global da OMS.

Entre os principais problemas do COVAX e para além do consórcio, a distribuição favorecendo os países ricos; a indústria vive a insuficiência da produção pra atender a demanda, além da falta de transparência nos contratos entre governos e empresas farmacêuticas.

Para Passarelli, o que está prevalecendo é a lógica do “farinha pouca, meu pirão primeiro”, quando a dinâmica da pandemia já deixou claro que se não proteger a todos, ninguém estará protegido.

“Estamos vivendo a iniquidade. E a epidemia da Covid-19 colocou uma lupa no que acontece no tecido social em termos de acesso: países pobres para o fim da fila”, ressalta o assessor.

Hora de repensar a governança global

“A epidemia não é um fato episódico e não sabemos o que vai acontecer. Por isso, cabe repensar as ações das organizações multilaterais e de governança global”, advertiu a ativista e doutora em Políticas de Saúde, Renata Reis, na segunda apresentação da tarde.

Renata, que também é membro da recém-criada Comissão Covid-19 da The Lancet/Saúde Global, Diplomacia e Cooperação, chamou a atenção sobre como as tecnologias, tratamentos e vacinas continuam sendo tratados como mercadoria, quando durante a pandemia, quando deveriam ser bem comum.

“A crise da Covid-19 eviscerou a crise de governança e isso é visto nos desentendimentos dos EUA com a China ou quando paises ricos fazem estoque e deixam paises pobres sem acesso”, explicou a pesquisadora.

Sobre o Brasil, Reis destaca o infeliz papel central que o país ocupa visto a carga pandêmica que se desenvolve e as avaliações que precisam ser feitas.

“Estamos vivendo uma cartilha da morte. Tudo o que se pensava, se criticava e se previa com a AIDS aconteceu com a Covid-19. Fruto de escolhas ruins, depois de um passado de boas referências”, comenta.

Na avaliação de Renata, o Brasil sofre com o pacto liberal pelo qual optou para sua política de propriedade intelectual, cedendo a lobbys da indústria e ameaças de retaliações comerciais por parte de países ricos.

Em comparação: enquanto a China fez uma escolha pelo desenvolvimento da sua capacidade tecnológica, o Brasil escolheu a dependência que se reflete na queda da produção de Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) no país de 20% em 2017 para apenas 10% atualmente.

“Durante todos estes anos não foi só o preço, o ativismo AIDS sempre criticou a dependência, a falta de uma produção local. Sempre se comentou que quando houvesse uma ruptura, nós ficaríamos pra trás e estamos vendo isso com a Covid-19”, destacou Reis.

A ativista exaltou o movimento AIDS como um lugar de consciência sobre tudo o que já foi feito pelo acesso a medicamentos e de onde pode ser iniciada uma recuperação histórica da posição de vanguarda do Brasil nas políticas de acesso a medicamento.

O controle social sob ataque

Se o governo brasileiro tivesse atentado à lista de medidas que o Conselho Nacional de Saúde sugeriu ainda em fevereiro de 2020, sobre barreiras epidemiológicas nos aeroportos, fronteiras e portos, o país teria iniciado o combate à pandemia com muito mais eficácia, ao contrário do desastre que se seguiu.

A opinião é do representante da Associação Nacional de Luta Contra a AIDS (ANAIDS) no Conselho Nacional de Saúde (CNS) e membro da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+), Moysés Toniolo.

O ativista fez a última apresentação da LIVE mostrando como o Brasil, mesmo contando com estruturas para tomar medidas eficazes para a contenção inicial da pandemia, optou deliberadamente por atrapalhar qualquer iniciativa de combate à pandemia.

“O Brasil, que tem o Sistema Único de Saude, em vez de ver a implementação de medidas racionais, viu um presidente tutelar a política de Saúde. Ele tirou o poder do Ministério; indicou tratamentos ineficazes e extremamente tóxicos, e insiste no combate a qualquer ação de busca por inovações tecnológicas”, destaca Toniolo. “A gente já sabe o caminho a seguir, o que a gente não tem é governo”.

Repletas de especialistas e pesquisadores, Toniolo conta que as estruturas de participação e controle social, como o Conselho Nacional de Saúde (CNS) não só foram ignorados como estão resistindo às investidas de desmonte pelo governo Bolsonaro.

Além do Executivo, Toniolo criticou o delírio da diplomacia brasileira que, mesmo diante do quadro de escassez interna, não apoia a proposta de suspensão temporária de patentes (Waiver) no período de pandemia, feita pela Africa do Sul e Índia,  além dos sucessivos ataques ideológicos à China, de quem o Brasil precisa comprar vacinas e adquirir insumos.

No Legislativo, Toniolo criticou o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM/RJ), tanto por ignorar mais de 60 pedidos de impeachment, quanto por travar outra iniciativa pela suspensão temporária dos efeitos de patentes, o PL1462/2020, articulado pelo Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual, junto aos parlamentares.

Saiba mais sobre o PL1462 /2020

“Rodrigo Maia, quando pôde, bloqueou a agenda do Congresso para um Projeto de Lei importante para que a gente possa produzir ou comprar vacinas e medicamentos de quem consegue atender a nossa demanda, já que as farmacêuticas não estão conseguindo”, explicou.

Na falta de uma visão estratégica até para o Plano de Vacinação lançado sem metodologia, Toniolo lembrou que o atual número de 234 mil mortos por Covid-19 no Brasil, além de envolto em subnotificação, ainda encobre outro número que será apurado com o tempo: o de vítimas por Câncer, Hepatites Virais, Tuberculose e HIV/AIDS que podem ter morrido por desassistência.

Propostas

Todos os convidados apresentaram sugestões de caminhos para atuação do poder público e da sociedade civil. Carlos Passarelli considerou que é fundamental apoiar os organismos multilaterais. “Não há saída”; incluir a participação comunitária na elaboração das respostas à pandemia; atuar por mecanismos que aumentem massivamente a produção de insumos e vacinas com uma distribuição justa e igualitária.

Renata Reis apontou para a necessidade de uma agenda de advocacy de interesse público; pela exigência de que o Brasil integre ações de interesse coletivo; que a derrubada do Teto de Gastos seja uma pauta coletiva e que a sociedade civil deve pautar as demandas e discussões por meio de uma radicalização do discurso.

Moysés Toniolo enfatizou a necessidade do Brasil ter uma agenda de tecnologia e soberania; o retorno às orientações históricas da diplomacia brasileira e a votação e aprovação do PL1462/2020.

No debate que se seguiu, a necessidade de movimentos sociais repensarem a Comunicação foi o ponto mais comentado.

Veja também o Dossiê HIV/AIDS e Covid-19 no Brasil, lançado pela ABIA em novembro de 2020.