Em nota, a organização francesa Observatório da Transparência nas Políticas de Medicamentos (Observatoire de la Transparence dans les Politiques du Médicament) pede o fim de todas as políticas de austeridade, em particular as relacionadas à saúde, e exige transparência em todos os aspectos da Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) de medicamentos, produtos de saúde e cadeia de produção são implementadas na França.
Segue texto original:
A explosão no preço dos medicamentos, ferramentas de diagnóstico e outros dispositivos médicos ameaça nosso sistema de saúde e suas finanças públicas. No entanto, os formuladores de políticas nunca questionaram a legitimidade e a racionalidade desses preços.
Mesmo os abusos mais flagrantes, como a aprovação no mercado de um medicamento para a hepatite C, da farmacêutica Gilead, dos Estados Unidos, em 2014 por € 40 mil por tratamento (R$ 180 mil), não foram suficientes para incitar os sucessivos governos a tomarem fortes medidas políticas, afim de preservar a sustentabilidade de nossa base de solidariedade do sistema de saúde.
Pelo contrário, pela primeira vez desde a criação da Seguridade Social em 1945, as autoridades de saúde limitaram primeiro o acesso a esse tratamento para pacientes por razões puramente econômicas e não médicas.
Esses preços muito altos permitiriam financiar a inovação? Na realidade, a empresa Gilead, que comprou uma startup que possuía essa molécula promissora, o sofosbuvir, se recuperou de seus investimentos em menos de vinte e quatro horas, graças ao aumento de sua participação, sem ainda ter vendido qualquer medicamento. E em 2019, ainda estamos pagando € 30 mil (R$ 135,2 mil) por este tratamento, ao mesmo tempo em que versões genéricas estão sendo vendidas em vários países por menos de € 200 (R$ 901,9).
E, como estávamos denunciando na época, concordar com preços tão altos estabeleceria precedentes, que seriam difíceis para as autoridades de saúde reverterem mais tarde nas negociações de preços de medicamentos com a indústria. Assim, em 2019, a empresa Novartis exige € 2 milhões (R$ 9 milhões) por injeção para um tratamento desenvolvido graças à caridade francesa Téléthon, ou seja, graças às nossas doações isentas de impostos.
Sobre outros exemplos de financiamento público à pesquisa: as ferramentas para monitorar a hepatite viral, desenvolvidas em parte graças à pesquisa pública francesa, estão agora sob patente de empresas privadas que monopolizam os lucros de vendas há mais de uma década. A Sanofi recebe crédito tributário de pesquisa de pelo menos € 150 milhões de euros (R$ 676.4 milhões) por ano somente em recursos públicos desde 2009.
No entanto, a mesma farmacêutica cortou mais de 2,8 mil postos de pesquisa e pôs fim a vários estudos, entre outras doenças, para o Mal de Alzheimer, em oncologia e doenças infecciosas, e faz escolhas cada vez mais perigosas em pesquisa e desenvolvimento.
Paralelamente, como exemplo, a Sanofi tenta patentear uma combinação de dois medicamentos contra a tuberculose para cobrar um preço tão alto quando na época em que foram descobertos há sessenta anos, cujas pesquisas e desenvolvimento que comprovaram a eficácia foram financiadas por fundos públicos, por meio da Unitaid, uma iniciativa global cuja estrutura é financiada pelas receitas de um imposto sobre passagens aéreas e, portanto, por dinheiro público.
Enquanto isso, a principal inovação no mundo da tuberculose, a bedaquilina, medicamento que cura a TB multirresistente (TBMR), é comercializada nos EUA pela empresa Janssen por mais de € 20.000 (R$ 180,1 mil), enquanto estudos mostram que seu desenvolvimento foi financiado cerca de 60% por recursos públicos e de filantropia. Numerosos são os exemplos que mostram que, se os riscos de falha na pesquisa são absorvidos na maioria das vezes pelo setor público, os lucros são privatizados exclusivamente. Estamos pagando várias vezes pelos mesmos medicamentos e produtos de saúde.
Além disso, o sistema de patentes é por natureza disfuncional. Permite, por exemplo, que uma combinação de duas moléculas conhecidas há décadas seja patenteada até 2034. Esse é esse sistema opaco e a indulgência de nossos líderes políticos que foram responsáveis, em particular nos últimos 20 anos, pela inflação dos preços dos produtos. Medicamentos com preços na casa dos bilhões, bilhões que não hesitamos em economizar nas costas de hospitais públicos, previdência social, acesso a cuidados de saúde para migrantes e pensões.
Vinte anos de gastos “out-of-pocket” (despesas diretas) que continuam pressionando aumento dos custos médicos e dos planos de saúde, obrigando os pacientes a pagarem mais, em total contradição com o espírito da carta da Previdência Social. Vinte anos desafiando o princípio do acesso à saúde para todos, inclusive de migrantes e imigrantes, que culmina neste ano com um ataque à assistência médica do Estado, a cobertura de saúde para pessoas sem documentos, mas também o acesso à saúde para solicitantes de asilo, tudo bancado por mentiras patéticas de cunho sanitário. Sim, em 2019 na França, acusamos pessoas que procuram asilo, que atravessaram continentes inteiros, zonas de guerra.
Vinte anos de cortes no orçamento sob a influência de reformas administrativas, forçando hospitais e serviços de emergência a reduzirem o número de leitos e funcionários, e culminando, apesar da mobilização de funcionários, com a adoção da Lei de Financiamento da Seguridade Social para 2020 (PLFSS 2020). Vinte anos de discurso fatalista nos explicando que o sacrifício de nossas aposentadorias é inevitável, quando dezenas de bilhões de euros públicos financiam os únicos lucros dos acionistas da indústria farmacêutica, sem que o sistema que eles apreciam seja avaliado.
À medida que as políticas ultraliberais se multiplicam, os serviços públicos sofrem cortes cada vez maiores, tendendo inevitavelmente à privatização, desejada, planejada, orquestrada para Previdência Social, hospitais, emergências e demais serviços.
O sistema de previdência está entre nossos últimos bens comuns e não podemos aceitar vê-los sendo destruídos, enquanto os interesses privados de empresas farmacêuticas em particular nunca são questionados. Uma verdadeira política pública sobre medicamentos permitiria que as multinacionais parassem de impor leis e políticas contrárias aos interesses de saúde pública de nosso país.
Como parte do mesmo PLFSS 2020 e sob pressão militante, foi adotada uma emenda que exige que as empresas farmacêuticas forneçam uma quantidade de ajuda pública antes de qualquer negociação dos preços de comercialização. Este é um primeiro passo essencial, mas que permanece insuficiente. Na pendência urgente do decreto de implementação e do fornecimento de outras informações para total transparência – como o gasto total em P&D, os preços reais pagos por um medicamento, patentes, diagnósticos, margens de intermediários, origem dos produtos, etc. – o governo e a maioria devem extrair as consequências desta primeira medida: não podemos aceitar a extensão de medidas de austeridade, em particular as que agravam o acesso aos cuidados e à proteção social sem a devida transparência sobre as dezenas de bilhões que pagamos indevidamente aos acionistas da indústria farmacêutica.
Traduzido de Mediapart
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