Em mais de 140 países, um total de 1,5 bilhão de pessoas precisam, todos os anos, de intervenções contra as chamadas doenças tropicais negligenciadas (DTN), segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde. Atingindo desproporcionalmente pessoas e regiões em situação de vulnerabilidade social, essas doenças são assim chamadas exatamente por não serem de interesse da grande indústria farmacêutica, que não vê boas possibilidades de lucro na pesquisa e no desenvolvimento de tecnologias em saúde direcionadas a elas.

Mais um dia. E vários pensamentos que não param de chegar. Tenho que ficar isolada? Minha família está em risco? Vou ter sequelas? Vou ficar sem trabalho? E se ficar, como vamos viver? Vai me faltar alimento? Se eu for no serviço de saúde, vão olhar por mim? Vão me olhar torto na rua? E se me dessem um remédio? Será que ninguém inventou um remédio melhor, que conserta uma coisa sem estragar outra? E essa bendita dessa vacina que não saí? Quando será que chega?

Medo. Ansiedade. Angústia. Espera. E assim muitas das pessoas vivendo com doenças negligenciadas seguem lidando, por longos períodos de tempo – às vezes, por toda a vida -, com sentimentos que o mundo todo tem tido a oportunidade de compartilhar nas últimas semanas.

Em mais de 140 países, um total de 1,5 bilhão de pessoas – quase 20% da população global – precisam, todos os anos, de intervenções contra as chamadas doenças tropicais negligenciadas (DTN), segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS). Já ouvimos falar de várias delas: leishmaniose, hanseníase, doença de Chagas, esquistossomose, entre outras. Atingindo desproporcionalmente pessoas e regiões em situação de vulnerabilidade social, essas doenças são assim chamadas exatamente por não serem de interesse da grande indústria farmacêutica, que não vê boas possibilidades de lucro na pesquisa e no desenvolvimento de tecnologias em saúde direcionadas a elas.

Imagina só: você acorda, faz um café e abre o jornal. Uma manchete se destaca: “pesquisas para desenvolvimento de uma vacina para a Covid-19 são canceladas por falta de interesse econômico”. É verdade que esse cenário parece difícil de imaginar. Afinal, pesquisadores, governos, empresas, organizações filantrópicas e diversos outros atores estão correndo contra o tempo para disponibilizar intervenções que possam mudar a história da pandemia de coronavírus. Segundo mapeamento do Instituto Milken, existem mais de 90 estudos para desenvolvimento de tratamentos e mais de 50 para vacinas. A cada dia, uma enxurrada de novas notícias surge sobre o assunto e, aparentemente, estamos cada vez mais próximos de uma solução para esta nova doença.

Rapidez

A rápida chegada de uma vacina ou de um tratamento adequado para a Covid-19 facilitaria a vida de todos nós, mas, sobretudo, de pessoas como a Nancy Dominga: “Estou entre minha vida e meu trabalho. E entre minha vida e meu trabalho, eu vou ficar com minha vida. Vou ficar dentro de casa”. Ela está no grupo de risco para a Covid-19 porque tem problemas cardíacos – sequelas de uma doença ainda não controlada em muitos lugares do mundo, apesar de descoberta há 111 anos: a doença de Chagas.

Assim como a Covid-19, muitas DTN acometem famílias inteiras. Nancy perdeu quatro entes queridos para a doença de Chagas, que mata, aproximadamente, 14 mil pessoas por ano na América Latina. Há entre 6 e 7 milhões de pessoas infectadas na região, mas menos de 10% são diagnosticadas e menos de 1% recebem tratamento em momento adequado. Não há vacina. E os dois medicamentos disponíveis, desenvolvidos há mais de 50 anos, são eficazes apenas nas fases iniciais da doença e apresentam efeitos adversos importantes.

Estamos todos preocupados com nossos avós, pais, tios, amigos e colegas que integram o grupo de risco para Covid-19. Queremos que a sociedade se mobilize e forneça condições sociais e econômicas para que nossos amados fiquem em casa e não precisem se expor ao risco da infecção. Imagina, então, saber que alguém que você ama integra o grupo de risco exatamente por ter sido exposto ao descaso da sociedade?

Esse abandono é histórico. Há doenças ainda importantes na atualidade, como a hanseníase (foram mais de 200 mil novos casos no mundo apenas em 2018), que causam sofrimento há – literalmente – milênios. Não bastasse a angústia de esperar por um tratamento eficaz, seguro e de qualidade que não vem, essas pessoas negligenciadas, muitas vezes, sofrem ainda o preconceito de uma sociedade mal informada.

Doenças negligenciadas

E foi pensando nisso que, em 2016, foi criado o Fórum Social Brasileiro de Enfrentamento das Doenças Infecciosas e Negligenciadas – um coletivo de movimentos, organizações e indivíduos que lutam pela defesa do direito à saúde das pessoas e comunidades afetadas e/ou vivendo com doenças negligenciadas e infecciosas. Eloan Pinheiro, ex-diretora do Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz (Farmanguinhos) e uma das idealizadoras do Fórum, aponta a iniciativa como um importante espaço para compartilhar conhecimento, enfrentar preconceitos e lutar por políticas públicas que mudem a realidade dessas pessoas.

Ela alerta que a luta por medicamentos e pela cura das DTN é fundamental, mas que novas pessoas serão infectadas se as causas mais profundas dessas doenças, como a pobreza e a falta de moradia adequada, não forem combatidas. Ao se referir especificamente à necessidade de novos medicamentos para DTN, Eloan nos convida a pensar fora da caixa: “Não basta somente ter os medicamentos, é necessário lutar por um fundo financeiro para estudos de novos produtos, kits e vacinas; inclusive utilizando o conhecimento local de plantas medicinais. É necessário ousar sair do esquema tradicional de desenvolvimento de produtos da grande indústria farmacêutica”.

Precisamos mesmo buscar caminhos diferentes – até porque tratamos, aqui, de doenças e pessoas invisíveis às nossas estruturas sociais tradicionais. Já a Covid-19 “tem um perfil bastante diferente das doenças negligenciadas no que diz respeito à visibilidade da doença, de seu conhecimento pela populaçāo e atenção dos meios de comunicação”, nos conta Francisco Viegas, Assessor de Advocacy de uma organização sem fins lucrativos de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) de tratamentos para DTN: a Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas – DNDi, na sigla em inglês . Francisco também aponta que o fato de a Covid-19 atingir países ricos “somado ao horizonte de um grande mercado para novas ferramentas em saúde, desperta o interesse de múltiplos atores na busca de soluçōes”.

Enquanto, em 2018, segundo o Relatório G-Finder, o financiamento global de 262 entidades para pesquisa básica e desenvolvimento de produtos para DTN chegou ao número recorde de US$ 4,05 bilhões, a Johnson & Johnson e o governo americano, sozinhos, se comprometeram a co-investir mais de 1 bilhão de dólares para a pesquisa e o desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19. Se, por um lado, saber que existem vários atores – inclusive a indústria farmacêutica – em busca de tecnologias para a Covid-19 traz certo alívio, por outro, faz cair a ficha da preocupação: se há interesse econômico em salvar minha vida, quando será que ela custa?

Acesso

Trabalhando há 15 anos com um modelo diferente do tradicionalmente adotado pela indústria farmacêutica, Francisco destaca que “a DNDi considera que seus tratamentos inovadores têm que chegar a todos os países e pacientes que deles precisam, por isso trabalhamos com a noção de ‘bem públicos’. Isto significa que idealmente não possuem proteção de patentes e têm garantias de preço acessíveis”. Apesar de muitas pesquisas contra o novo coronavírus adotarem abordagens colaborativas para acelerar as investigações – assim como a DNDi costuma fazer -, Francisco alerta: “este elemento da preocupação do acesso, até o momento, ainda não foi incorporado nas pesquisas de tratamentos ou vacinas para a Covid-19, apesar da importante pressão da sociedade civil”.

Os vários anos de descaso com a realidade das pessoas afetadas pelas doenças negligenciadas parecem, finalmente, cobrar a sua dívida. Todo esse tempo em que toleramos um sistema injusto de incentivo à inovação em saúde pode ter criado um dos maiores obstáculos para controlar a pandemia de coronavírus.

Ao aceitarmos que as novas tecnologias em saúde fossem determinadas pelo interesse econômico da indústria farmacêutica, em prejuízo da vida de milhões de pessoas, naturalizamos a precificação de nossas vidas e o entendimento da saúde como uma mercadoria – e uma mercadoria cara! Por isso, agora somos obrigados a nos perguntar: quando sair a vacina para o coronavírus, eu e minha família vamos ter acesso? Será que nós e nosso sistema de saúde teremos condições de comprar o medicamento?

A boa notícia é que a pandemia de Covid-19, justamente por cobrar nossas dívidas do passado, também está nos dando a oportunidade de parar, refletir, colocar nossas obrigações em dia e arrumar nossa casa. Dar visibilidade à realidade das pessoas acometidas pelas DTN durante a crise atual não é estabelecer uma hierarquia entre as enfermidades. É justamente o oposto. É a afirmação vigorosa de que não seremos capazes de superar o desafio que se apresenta se continuarmos aceitando um sistema que ignora o sofrimento de milhões de pessoas, como se elas tivessem menor valor e suas necessidades fossem menos urgentes.

Epidemias e doenças, independentemente da nossa vontade, vão continuar surgindo. O que nós podemos mudar é a forma como olhamos para os afetados por todas elas e como as enfrentamos. É precisamente neste momento em que a humanidade é chamada a combater um inimigo invisível que temos a oportunidade ímpar de enxergar a realidade silenciada daqueles que esperam, há muito tempo, para serem vistos.

Luciana M. N. Lopes é doutoranda em Saúde Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Alan Rossi Silva é doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Representam a Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais (UAEM), uma organização global de estudantes em defesa do acesso universal a medicamentos e de um sistema de inovação biomédico justo.

Publicado em Le Monde Diplomatique