Por: IDEC
Revista do IDEC número 157
Em janeiro deste ano, a Advocacia Geral da União (AGU) limitou a atuação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no processo de concessão de patentes de medicamentos. A partir de agora, a Anvisa deverá avaliar apenas a segurança e a eficácia dos remédios, enquanto caberá ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) o exame do pedido de patente propriamente dito.
Por não concordar com essa decisão, o médico Luis Carlos Wanderley Lima, que ficou à frente da Coordenação de Propriedade Intelectual (Coopi) da Anvisa por oito anos, pediu sua exoneração e está aguardando remoção para outra área. Foi com ele que conversamos, por telefone, para saber um pouco mais sobre esse assunto, que apesar de bastante específico, tem impacto na vida de todos nós, consumidores.
Luis Carlos explica a seguir, de forma bastante didática, qual era o papel do INPI e da Anvisa na concessão de patentes (e como ficou após o parecer da AGU), e desabafa sobre sua saída da Coopi
Idec: Como funciona o processo de concessão de patentes para medicamentos?
Luis Carlos Wanderley Lima: A patente nada mais é que um contrato entre o Estado e o inventor, no qual o primeiro se compromete a impedir a concorrência. E isso, para o capitalismo, é a morte, porque se não há concorrência, a empresa que detém a patente pode colocar o preço que quiser no produto. Quando você acha que tem uma invenção, vai até o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e faz o depósito do pedido. Isso é feito para medicamentos desde que o Brasil mudou a lei, em 1996.
Depois que o pedido é depositado, o INPI leva o tempo que quiser, às vezes dez anos, para encaminhá-lo à Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] para anuência prévia [mecanismo que concede à agência a última palavra no processo de concessão de patentes de remédios]. Mas eles só mandam os pedidos com os quais concordam. O que é curioso, porque a lei não diz isso, ela diz que todos os depósitos de medicamentos precisam passar pela Anvisa. De 2001 até junho deste ano chegaram até nós mais ou menos 1.600 pedidos. Se não houvesse anuência prévia da Anvisa, teriam sido 1.600 patentes concedidas no Brasil. Nestes dez anos a gente negou cerca de 230 pedidos, quase 15%. Alguém pode dizer que é pouco, mas não estamos falando de pão, e sim de medicamento. Só se pode ter monopólio se a lei for cumprida, e em 15% dos pedidos que nos são enviados ela não é.
Quando o pedido de patente é depositado, o produto ainda não existe. Depois do depósito é que vão ser realizados testes químicos para tentar transformar a ideia num comprimido, numa cápsula etc. Então, deve-se pedir à Anvisa o registro sanitário (que não é o mesmo que patente) para poder comercializar o medicamento.
Por fim, pela lei brasileira, quando a concessão é dada, tem-se 20 anos para explorar a invenção no mercado, sem concorrência.
Idec: E depois que se passam esses 20 anos?
LCWL: Aí o produto cai em domínio público e pode ser copiado. É quando surge a possibilidade do genérico. Mas é importante ressaltar que os 20 anos são contados a partir da data do depósito do pedido, não da concessão da patente. Por exemplo, se o pedido for depositado em 2000 e a patente só for concedida em 2008, ela valerá até 2020. Mas como a lei brasileira diz que a patente não pode vigorar por menos de dez anos, se o pedido for depositado em 2000 e a patente só sair em 2011, o prazo será de dez, e não de nove anos.
Idec: O senhor pode citar algum caso emblemático em que a negativa de patente pela Anvisa tenha trazido benefícios aos consumidores?
LCWL: Eu não saberia dizer isso em reais, mas imagine que um genérico custa no minimo 35% a menos que o medicamento de marca. Então, toda vez que um genérico entra no mercado, a população se beneficia disso. A Anvisa não concedeu anuência para o Taxotere, o Valcyt e o Seroquel, por exemplo, ou seja, eles não têm patente e estão sob ação judicial para tentar anular a anuência prévia da Anvisa.
Idec: E por que a concessão costuma demorar tanto?
LCWL: Essa pergunta deveria ser feita ao INPI. Apesar de ele ter contratado pessoas e investido em equipamentos, o tempo para conseguir uma patente no Brasil passa de dez anos. O Jorge de Paula Costa Ávila [presidente do INPI] sempre reconhece em seus discursos que demora, e promete que num futuro próximo o tempo de espera será reduzido. Mas eu fiquei na Coopi [Coordenação de Propriedade Intelectual da Anvisa] de 2003 até este ano, e o tempo só aumentou. Pra você ter uma ideia, este ano estamos analisando os pedidos de 1999 e 2000. E a demora não é da Anvisa. Nós levamos três, quatro meses para analisar. Os mais complexos – quando não temos uma diretriz para aquele pedido específico e precisamos criar uma – podem levar alguns meses, até um ano. Mas isso acontece em menos de 5% dos casos. Então, dizer que a culpa pela demora na concessão de patentes no Brasil é da Anvisa é mentira, injustiça, covardia. E podemos provar isso.
Mas parece que a demora do INPI não incomoda muito, porque você vê as pessoas baterem muito mais na Anvisa do que no INPI. Porque, do meu modo de ver, o INPI é uma instituição mais sintonizada com o interesse privado. E é importante dizer também que a demora não é tão ruim assim para as empresas, pois depois que depositam o pedido, nenhuma outra depositará o mesmo pedido. Então, elas já se comportam como se tivessem a patente.
Idec: E qual é o papel da Coopi?
LCWL: O artigo 209-C da Lei nº 9.279/96 [Lei da Propriedade Industrial] é bem telegráfico e diz que a "concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos dependerá da prévia anuência da Anvisa". Há quem diga que a anuência prévia é ilegal e inconstitucional, mas até hoje ninguém entrou no Supremo Tribunal Federal (STF) para arguir sua inconstitucionalidade. Portanto, essa argumentação é vazia. Muitos advogados dizem que a Anvisa invade a competência do INPI, mas nunca provaram isso.
A Anvisa entrou no processo de concessão de patentes no fim de 1999, mas quem concede a patente, de fato, é o INPI. A Anvisa é um mero órgão anuente.
Idec: O que é avaliado pela Anvisa?
LCWL: A lei tem 200 e tantos artigos, mas o exame do mérito se dá basicamente por meio de três, que falam em novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Este último é quase pra inglês ver, porque ninguém vai inventar algo que não possa ser reproduzível e vendido.
Então, basicamente, avalia-se se o medicamento é novo e inventivo. E aí é importante diferenciar invenção de descoberta, pois para a propriedade intelectual os termos não são sinônimos. A invenção é algo que não existia antes. Já a descoberta é algo que já existia e alguém que não a conhecia passa a conhecer. E a patente é concedida para invenções.
A Anvisa examina o projeto inteiro. Ela só não examina questões burocráticas, por exemplo, se o pedido foi depositado em cinco vias, se a taxa foi paga etc. Isso é o INPI que vê.
Só podemos aprovar os pedidos que entendemos, por isso ele precisa ser claro, com o passo a passo para obter o medicamento. Assim, se for necessário, o Estado pode tentar reproduzir aquela invenção num laboratório oficial. E aqui a Anvisa e o INPI divergem. Nós vemos se todas as informações estão ali e também consultamos bancos de dados mundiais e artigos científicos para saber se alguém já fez aquele pedido. O INPI não se preocupa com isso.
Idec: A "briga" entre a Anvisa e o INPI já tem mais de dez anos. O senhor pode nos explicar as razões?
LCWL: A indústria farmacêutica, os advogados e a Associação Brasileira de Propriedade Intelectual queriam acabar com a anuência prévia desde que ela foi criada, argumentando que demora, que a Anvisa só nega as patentes, que a atuação da agência é ilegal, que a competência para examinar o mérito é só do INPI.
O exame da Anvisa é mais rigoroso, porque afinal de contas não estamos falando de automóvel, computador, DVD, mas de medicamento. O INPI não pode olhar para a patente de medicamento do mesmo jeito que olha para outros tipos de patentes. E foi por isso que se criou a anuência. Mas é difícil entender por que ela é tão combatida, por que ela incomoda tanto. Podem dizer "não vai ter medicamento no Brasil se a Anvisa continuar agindo assim [negando patentes]". Mas nós não estamos dizendo que as patentes merecidas não serão concedidas, apenas as que forem ilegais.
Então, essa foi a briga durante estes dez anos.
Idec: Em 2009, a AGU já havia tentado restringir os poderes da Anvisa na concessão de patentes. E isso foi reafirmado em janeiro deste ano com um parecer final que determina que a Anvisa analise apenas se o novo medicamento oferece risco à saúde. Isso não viola a Lei de Propriedade Intelectual?
LCWL: Esse parecer, que passou pelo INPI, não tenho dúvida, teve contribuições dos opositores da anuência prévia, e ficou parado na AGU durante todo o ano de 2010.
Como todos os procuradores dos ministérios, das agências reguladoras e das fundações estão ligados à AGU, eles não podem criticar um parecer desse órgão. A procuradoria da Anvisa é subordinada à AGU. Então, é uma estratégia, uma medida cercada de cuidados por todos os lados. Você dá um parecer, diz que a Anvisa não pode mais fazer o que fazia, e seus próprios procuradores não podem discutir isso porque estão subordinados ao órgão responsável pela decisão.
Para que o parecer tenha de ser cumprido por todos os órgãos da administração pública, é preciso que o presidente da República o assine. Mas como a presidente Dilma [Rousseff] ainda não assinou, a Anvisa até pode continuar examinando os pedidos que chegarem, embora o INPI praticamente não mande mais nada.
O parecer não acabou com a anuência prévia nem com a Coopi. Ele diz que o processo precisa continuar saindo do INPI e indo para a Anvisa. O que ele determinou é que a Anvisa não faça mais o exame do mérito, ou seja, ela não pode mais dizer se aquilo ali é inventivo, se tem novidade, se tem aplicação industrial, se tem suficiência descritiva, se o sujeito alterou o pedido. E foi aí que eles meteram os pés pelas mãos, porque se não é para fazer isso, é para fazer o quê? Qual é o papel da Anvisa agora? Nenhum, né? Aí eles pensaram "A Anvisa lida com questões sanitárias, então ela vai analisar o risco à saúde". Mas já fazemos isso quando concedemos o registro sanitário, que é outra história. E como vamos analisar o risco à saúde se no momento em que o depósito do pedido é feito o medicamento ainda não existe? E pior, eu não posso analisar algo que não é amparado pela Lei de Propriedade Industrial, que não inclui entre as exigências para a concessão de uma patente que se faça exame do risco à saúde. Como alguém pode colocar seu nome embaixo de um parecer que manda a Anvisa cometer uma ilegalidade?
Eu acho que o Ministério da Saúde e a Anvisa não se posicionaram contra o parecer como deveriam, defendendo a anuência prévia. O governo até poderia chegar à conclusão de que ela não é interessante, mas a decisão tomada deveria ter sido outra. A forma como foi feita é pouco digna, pois mantém a ideia de que existe anuência prévia, quando ela não existe.
Eu esperei seis meses pra ver se se chegava a um entendimento, mas não se chegou. E foi por isso que pedi a minha exoneração. Não tinha mais condições de estar à frente de uma coordenação que era instada pelo parecer e pelo Poder Judiciário a cometer uma ilegalidade. Eu preferi não estar mais à frente disso, porque para mim a anuência prévia não existe mais. Não como ela foi pensada, criada e exercida durante dez anos. Eu não queria compactuar com um procedimento inadequado.
Idec: E quais as implicações dessa decisão da AGU para o mercado de genéricos?
LCWL: Não há ainda, que eu saiba, uma relação direta entre a não anuência e o surgimento de genéricos, mas se eu não concedo patente, abro campo para eles entrarem. O genérico é mais barato que o de marca e pode ter concorrência de outro genérico. Se eu concedo a patente, não há competição.
Idec: Essa decisão prejudica o consumidor e o próprio programa de saúde pública?
LCWL: Com certeza, porque com a concessão de mais patentes, vai haver menos concorrência, menos genéricos no mercado e, consequentemente, preços mais altos. E isso para o bolso da população e para o orçamento do Ministério da Saúde vai ser o caos.
Idec: Muito se diz que no Brasil o número de patentes é baixo comparado ao de outros países. É isso mesmo?
LCWL: Um relatório da Fundação Mundial de Propriedade Intelectual mostra que quase 80% das patentes em vigor no mundo são obtidas nos EUA, no Japão, na Coreia do Sul, na China e na comunidade europeia. Então é claro que vai sobrar pouco, ainda mais para países que investem pouco como o nosso. O Brasil não tem 1% das patentes que estão em vigor. Todo o sistema de patentes brasileiro, no que diz respeito a produtos e processos farmacêuticos, está montado para proteger a propriedade privada estrangeira. O Brasil tem em vigor umas 30 mil patentes, eu não sei dizer quantas são de medicamentos, mas com certeza mais de 90% das patentes em vigor no Brasil são estrangeiras. E se tivéssemos dados só de patentes de medicamentos, iria chegar a 99%. A Anvisa tem um estudo que diz que de 96 moléculas, se não me engano, que estavam em vigor no Brasil, só uma era de propriedade ou de pesquisa brasileira.
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