Por: MSF

A União Europeia e suas empresas farmacêuticas multinacionais estão agora pressionando o escritório do primeiro ministro indiano?

Nos últimos meses, enquanto os negociadores da Índia e da União Européia estiveram definindo os detalhes de um Tratado de Livre Comércio a ser assinado em alguns meses, pessoas vivendo com HIV estão aumentando nas ruas. De Nova Déli à Nairobi e de Bruxelas a Bankok, elas tem protestado contra a ameaça real contra a capacidade da Índia de fornecer medicamentos genéricos que salvam vidas ao redor do mundo em desenvolvimento.

Publicamente, ambos os lados garantiram que o acordo não vai afetar o acesso a medicamentos acessíveis, e reiteraram, como se fosse o habitual, a primazia da saúde das pessoas frente aos interesses econômicos. Mas a imprensa indiana agora reporta que o gabinete do Primeiro Ministro, sob pressão para concluir o acordo, pediu ao departamento governamental encarregado que reconsidere as medidas de Propriedade intelectual que haviam sido rejeitadas anteriormente.

O que está em jogo? A Índia havia se tornado a farmácia do mundo em desenvolvimento porque seus produtores são capazes de fabricar medicamentos genéricos que são patenteados em outros lugares. Isso constituiu um refugio seguro para medicamentos a preços acessíveis. Médicos Sem Fronteiras já compra de produtores indianos mais de 80% dos remédios que usa para tratar 160 mil pessoas vivendo com HIV ao redor do mundo. Acontece que esse refúgio seguro tem estado sob constante ataque.

Há seis anos atrás, o primeiro ataque aconteceu quando a Índia, sob regras internacionais de comércio, foi obrigada a introduzir patentes para medicamentos. Já foram concedidas patentes para remédios de câncer, AIDS e Hepatite. Mas fundamentalmente, os parlamentares indianos buscaram balancear patentes e saúde pública, e definiram uma lei de patentes rigorosa que faria frente as regras internacionais e protegeria o acesso a medicamentos genéricos de baixo custo.

Uma provisão central da lei impede empresas farmacêuticas de abusarem do sistema de patentes. A sessão terceira diz que nenhuma patente deve ser concedida para uma mudança pequena de um medicamento existente, se ela não mostrar nenhuma eficiência terapêutica significante em relação ao que já existe. Isso impede “evergreening”, quando uma empresa busca monopólio para impedir a competição de genéricos pelo máximo de tempo possível, apenas fazendo pequenas alterações no medicamento.

Isso gerou a ira das empresas farmacêuticas multinacionais, que lançaram um segundo ataque contra a farmácia do mundo em desenvolvimento. Como os pedidos de patentes de vários medicamentos caros – o oseltamivir para a gripe aviária e suína, o imatinib para leucemia e, muito recentemente, o lopinavir / ritonavir e atazanavir para a AIDS – não conseguiram passar no teste de patenteabilidade na Índia, as empresas tentaram derrubar a lei, ou esvaziá-la de qualquer substância. A Novartis notoriamente levou o governo da Índia para o tribunal em 2006, mas perdeu. Outras empresas como a Bayer também tentaram atacar, mas ainda não foram bem sucedidos.

Dentre as negociações dos acordos de livre comércio, a agenda de comércio europeu tem se tornado a mais recente porta-voz das multinacionais farmacêuticas. Até agora, grande parte do debate sobre a produção de genéricos na Índia concentrou-se em patentes. Agora, a UE mudou de estratégia e e está fazendo de tudo para a Índia aceitar um outro meio de bloquear a produção de genéricos: a exclusividade de dados.

Com exclusividade dos dados, a Índia estaria concordando em conceder um período de exclusividade sobre os dados de ensaio clínicos apresentado por uma empresa farmacêutica.Isso impediria a Controladoria-Geral de Medicamentos da Índia – o órgão responsável pela aprovação de medicamentos para o mercado – de registrar um medicamento genérico, até que o tempo acabasse. A indústria farmacêutica multinacional pediu para que o tempo seja de 10 anos.

A exclusividade de dados é uma porta de fundos para a proteção de monopólio. Ele também afasta as tentativas por parte dos parlamentares da Índia de equilibrar a saúde e os lucros. Ela faz pouco caso do trabalho dos escritórios de patentes da Índia de aplicar normas rigorosas e garantir que apenas os medicamentos inovadores recebam monopólio. Agora, uma empresa farmacêutica teria apenas que apresentar dados de ensaios clínicos para a obtenção de vários anos de monopólio, independente se a droga foi patenteada ou não, se era velho ou novo, se mostrou-se inventiva ou não, se os resultados deram mais benefícios terapêuticos ou não.

O efeito sobre o acesso a medicamentos mais baratos é claro. A Índia pode aprender com os países que o precederam nesse caminho. A Jordania adotou exclusividade de dados como parte de um acordo comercial com os EUA. Um estudo realizado pela Oxfam descobriu que dos 103 medicamentos registrados e lançados desde 2001 que não tinham qualquer proteção de patentes na Jordânia, pelo menos, 79% não tinha a concorrência de um equivalente genérico, como consequência da exclusividade dos dados. O estudo também constatou que os preços desses medicamentos no âmbito de exclusividade de dados foram de até 800% maior que no vizinho Egito.

A Índia não deve repetir os erros dos outros, ou o efeito será sentido muito além das fronteiras da Índia. O país está a origem da maioria das drogas usadas para tratar a Aids em países em desenvolvimento. Medicamentos a preços acessíveis produzidos na Índia têm desempenhado um importante papel diante das mais de cinco milhões de pessoas recebendo tratamento para HIV / AIDS no mundo em desenvolvimento hoje.

Em 2000, o tratamento de uma pessoa soropositiva tinha um custo anual superior a 400 mil rupias. Graças à concorrência de genéricos da Índia, este mesmo tratamento custa hoje 3 mil. Qualquer medida no Acordo de Livre Comércio que tenha o efeito de bloquear a concorrência seria um retrocesso no acesso a medicamentos. A Índia precisa continuar forte e resistir às exigências europeias.