Por Felipe Carvalho

Acabo de retornar da Conferência Internacional de Aids, que aconteceu entre o dia 29 de julho e 3 de agosto, na cidade de Montreal, Canadá, com um sentimento de urgência e angústia. Neste evento, que reuniu cerca de 9 mil participantes, entre cientistas, pesquisadores, ativistas, comunidades afetadas pela epidemia, governos e representantes do setor privado, ficou muito evidente que não dá mais para sustentar slogans como “O fim da pandemia de Aids em 2030”. Ainda persistem tantas violações de direitos humanos, ainda faltam tantas políticas para assegurar cuidado integral e ainda existe tanta inequidade na distribuição de tratamentos e métodos preventivos que chega a ser indecente enquadrar a luta contra a Aids numa falsa aura de triunfo.

A própria UNAIDS lançou na véspera da conferência um relatório bastante alarmante, mostrando o recrudescimento da pandemia de HIV/Aids e alterando seu slogan para um objetivo mais modesto: “O fim da Aids como questão de saúde pública até 2030”. 

De uma maneira geral, muitas falas durante a conferência convergiram para ideia de que a Aids precisa voltar a ser tratada como uma prioridade global, o que implica a superação das atuais lacunas de financiamento e uma revisão geral das estratégias que se desviaram do foco em direitos humanos, apesar de ter sido essa a marca que diferenciou a luta contra a Aids no cenário da Saúde global. 

Promessas da ciência

No campo científico, há um crescente entusiasmo sobre novas classes terapêuticas para tratar o HIV/Aids, novos métodos de tratamento e novos dispositivos. Em particular, muitas sessões focaram em como o medicamento cabotegravir, já aprovado nos EUA para tratamento e para prevenção, pode mudar o paradigma dos serviços de HIV/Aids por meio das formulações de longa duração que substituiriam o tratamento diário. Da mesma forma, o medicamento Lenacapavir, ainda em fase de estudo, apresenta dados promissores como uma outra opção de longa duração. 

Também houve muito destaque para o papel que os anticorpos monoclonais podem ter tanto no tratamento como na prevenção. Essa classe de medicamentos usa técnicas específicas de clonagem de células para gerar anticorpos amplamente neutralizantes para combater o vírus HIV. Essa estratégia também possibilitaria o tratamento e a prevenção feitos de seis em seis meses em vez da ingestão diária de comprimidos. Os anticorpos monoclonais também reacendem a esperança na busca por uma cura, pois a imunoterapia direcionada poderia ser um meio de eliminar o reservatório de HIV e assim acabar definitivamente com a replicação viral. 

Em relação ao desenvolvimento de vacinas, foram apresentadas algumas iniciativas e novas investigações, levando-se em conta que muitas estratégias anteriores para o desenvolvimento de vacinas falharam. Há, no entanto, uma expectativa de que vacinas baseadas em mRNA, que foram desenvolvidas para Covid-19, possam ser um caminho promissor para uma vacina para o HIV. 

Numa das sessões científicas na plenária principal, eu perguntei aos palestrantes Glenda Gray e Thomas Rasmussen como eles qualificariam o panorama de apoio e financiamento para as pesquisas de vacinas e de cura do HIV. Eles enfatizaram que é preciso aumentar o financiamento e que os governos precisam colocar mais peso nesses campos de estudo, que hoje são muito dependentes de entidades filantrópicas como a fundação Gates. A dra. Glenda adicionou ainda que é importante pensar antecipadamente em como assegurar que esses bens sejam produzidos em países em desenvolvimento.

Uma das falas mais importantes da conferência sem dúvida foi do Diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas (NIAID) dos EUA, Anthony Fauci, no dia 31 de julho. Ele fez um panorama geral sobre todas as pesquisas que apontam para os benefícios de antivirais de ação prolongada e de anticorpos monoclonais tanto no tratamento quanto na prevenção do HIV/Aids, mas também deixou bem claro que sem equidade na distribuição essas novas estratégias não vão virar o jogo na luta contra a doença.

Protestos e mobilizações

Essa conferência foi marcada por diversos protestos liderados por organizações da sociedade civil e comunidades afetadas pela pandemia de HIV/Aids. Um tema que permeou toda a conferência foi a exclusão de diversas pessoas de países africanos, asiáticos e latino-americanos por conta da política restritiva de vistos do Canadá, que fez com que muita gente tivesse o visto negado ou não analisado a tempo para ir à conferência.  

Esse tema foi comentado em praticamente todas as falas na plenária de abertura, no dia 29 de julho, onde muitos palestrantes lamentaram a atitude do governo canadense. No dia 30, um grupo de ativistas marchou pela conferência até o stand do governo do Canadá para protestar contra a falta de inclusividade da conferência usando o grito “sem visto, sem voz”. No dia 31, foram colados no stand do governo canadense diversos cartazes com nomes e nacionalidades de pessoas que tiveram o visto negado.

24th International AIDS Conference, Montreal, Canada.rrAround theconference.rrPhoto©Marcus Rose/IAS

A plenária de abertura da conferência, no dia 29 de julho, também foi marcada pela intervenção de ativistas de vários países, que tomaram o palco para pedir mais visibilidade para as pessoas que estão morrendo de HIV/Aids, especialmente por meio das co-infecções por tuberculose e por meningite criptocócica, para pedir mais acesso a medicamentos e métodos preventivos, para denunciar iniciativas de criminalização da transmissão do HIV/Aids e os retrocessos no combate ao estigma. Estava prevista a presença de um representante de alto nível do governo canadense nessa abertura, mas foi cancelada de última hora. Por isso, o Canadá foi taxado pelos ativistas de racista (devido a política de vistos) e covarde (por não comparecer ao evento).  O ato teve ampla repercussão na imprensa internacional.

Conferência AIDS 2022, Montreal, Canadá. Photo©Jordi Ruiz Cirera/IAS

Ainda no dia 29, houve um protesto em um evento em que havia a presença de representantes da empresa farmacêutica ViiV, que produz com exclusividade o medicamento cabotegravir. Antes da conferência, a empresa anunciou um acordo global que possibilita que, daqui a 4 anos, um grupo selecionado de países possa comprar versões genéricas por preços mais acessíveis. Este acordo foi celebrado como uma grande vitória, mas as coisas não são bem assim. Em primeiro lugar, a ViiV está cobrando preços injustificáveis pelo cabotegravir e este acordo serve para que a empresa mantenha seu poder de decisão sobre os preços. Ou seja, será permitida a produção de genéricos, mas esses produtores serão controlados pelos termos ditados pela ViiV. Em última instância, o que está sendo criado é uma concorrência controlada, que não vai garantir preços justos e sustentáveis. Em segundo lugar, o acordo exclui vários países da América Latina, que ficarão numa posição ainda mais difícil para negociar a compra deste produto.

Para denunciar essas injustiças, eu fiz uma das falas neste ato, comentando a exclusão do Brasil deste acordo. Um país que inclusive contribuiu muito com ensaios clínicos e dados que serviram para embasar a aprovação deste medicamento. No entanto, quando se trata do acesso ao produto, o Brasil está na lista dos países que terão que pagar mais caro. 

Houve também protestos para denunciar a falta de aplicação de evidências científicas em políticas concretas nos países, como é o caso, por exemplo, do consenso I=I (Indectectável = Intransmissível). Também houve um protesto específico para trazer mais visibilidade para América Latina, que é geralmente esquecida em relatórios e políticas globais, apesar de ser muito afetada pela pandemia de HIV/Aids. Na marcha latino-americana os principais gritos foram pelo fim das patentes de medicamentos na região, por mais pesquisa pela cura da Aids e por mais políticas voltadas para as populações-chave.

Durante uma sessão no dia 01 de agosto, específica sobre estratégias de enfrentamento à nova variante da varíola, declarada recentemente pela OMS como emergência de saúde pública de importância internacional, os ativistas novamente roubaram a cena durante a fala do Diretor da Divisão de Prevenção do HIV do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, Demetre Daskalakis. O objetivo foi denunciar a falta de ação do governo americano para proteger sua própria população do novo vírus, deixando em particular as comunidades historicamente, como a população negra e as pessoas trans, sem acesso a vacinas. Também foi ressaltado como o país está prejudicando outros países na sua tentativa de acumular vacinas.

Conferência AIDS 2022, Montreal, Canada Photo©Steve Forrest/Workers’ Photos/IAS

Os ativistas brasileiros presentes na conferência também organizaram uma carta aberta que será enviada aos presidenciáveis, contendo uma agenda necessária para colocar a resposta ao HIV/aids no Brasil à altura dos desafios que se apresentam. 

 

Reflexões finais

Estamos numa conjuntura onde não é exagero dizer que estamos andando para trás e ignorando lições aprendidas na luta contra o HIV/Aids. Muitos direitos estão sob ataque e a inequidade é cada vez mais gritante. A crise de HIV/Aids é atravessada por outras crises como insegurança alimentar e emergência climática. A apatia dos governos, a concorrência com outras prioridades e o negacionismo estão colocando obstáculos cada vez maiores entre os avanços científicos e os benefícios para as populações. 

Somente um processo muito sólido de diálogo, educação e mobilização pode colocar a luta contra a Aids de volta nos trilhos. Quando se trata de implementar políticas de prevenção e tratamento, os avanços científicos precisam estar a todo momento articulados com a garantia dos direitos humanos e colocados a serviço da equidade e da solidariedade. Pouco irá adiantar desenvolver novas terapias se elas se tornarem um privilégio apenas para populações mais ricas. A revitalização da pauta de direitos humanos também é fundamental para combater a raiz estrutural de situações que colocam as pessoas em maior vulnerabilidade ao HIV/Aids ou que afetam adesão a tratamentos e cuidados. Um olhar humanizado e integral precisa ser resgatado, afinal ainda hoje vemos muitas mortes por HIV/Aids (10 mil por ano apenas no Brasil) e cerca de 10 milhões de pessoas no mundo sem acesso ao tratamento.

Um choque de realidade é o primeiro passo para caminhar na direção certa.