NOTA DO GTPI: O GTPI destaca o artigo publicado por The Washington Post para ressaltar o volume de recursos públicos empregados na descoberta do medicamento Truvada, como PrEP, e para criticar veementemente os lucros da empresa Gilead com as compras governamentais para este fim. O artigo foi traduzido na íntegra – com algumas inserções de intertítulos – de forma que o GTPI pode ter ressalvas sobre alguns pontos, como o aspecto das patentes por uso. O GTPI quer o #TruvadaLivre

Thomas Folks passou anos em seu laboratório de Prevenção e Controle de Doenças nos Estados Unidos desenvolvendo um tratamento para bloquear o HIV mortal em macacos. Em seguida, o pesquisador de AIDS de São Francisco, Robert Grant, usando US$ 50 milhões em doações federais, provou que o tratamento funcionava em pessoas que praticavam sexo de risco.

Seu trabalho – quase totalmente financiado pelos contribuintes dos EUA – determinou um novo uso para o remédio chamado Truvada: prevenir a infecção pelo HIV. Mas o governo dos EUA, que patenteou o tratamento em 2015, não está recebendo nem um centavo pelo uso do medicamento da Gilead Sciences, fabricante do Truvada, que faturou US$ 3 bilhões em vendas no ano passado.

A Gilead argumenta que as patentes do governo para o uso Truvada como Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) são inválidas. E o governo não conseguiu chegar a um acordo sobre royalties ou outras concessões da empresa – benefícios que poderiam ser usados ​​para aumentar a cobertura da prevenção.

“É realmente injusto o investimento do esforço, do tempo e do dinheiro dos contribuintes para que o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e a Gilead não cheguem a um acordo”, disse Folks, que é aposentado.

O impasse extraordinário entre o CDC e uma empresa farmacêutica sobre os direitos de patente levanta uma grande questão para a administração Trump: com que agressividade o governo deve tentar impor suas patentes contra um parceiro do setor?

O Departamento de Saúde e Serviços Humanos, que inclui o CDC e os Institutos Nacionais de Saúde, patenteou mais de 2,5 mil invenções criadas com dólares dos contribuintes desde 1976, de acordo com o Escritório de Marcas e Patentes dos EUA.

Rotineiramente, o departamento licencia novos compostos farmacêuticos para empresas privadas que levam essas descobertas financiadas pelo setor público para o mercado.

Disputas sobre propriedade intelectual entre empresas privadas são comuns e elas geralmente acabam em tribunais. Mas é raro que o governo traga ações judiciais por patentes farmacêuticas.

A Gilead, que detém o monopólio do Truvada nos Estados Unidos, cobra entre US$ 1,6 mil e US$ 2 mil pelo fornecimento mensal de uma pílula que pode ser fabricada por uma fração desse valor. O número de novas infecções por HIV nos Estados Unidos quase não diminui, e fica estagnado em torno de 40 mil por ano, de acordo com estimativas do CDC.

Os ativistas querem que o governo tenha uma postura mais agressiva contra a Gilead. Suas reclamações são parte de uma onda mais ampla de raiva sobre as empresas farmacêuticas, que obtêm pesadas recompensas financeiras, capitalizando a pesquisa financiada pelo contribuinte.

“O CDC tem todas essas patentes e está permitindo que a Gilead roube o povo americano às custas da saúde pública”, disse ativista do HIV/Aids e co-fundador da Colaboração PrEP4All, James Krellenstein, que passou meses investigando as patentes do governo. Em vez de impor a patente, Krellenstein disse que os funcionários do CDC estão “dando voltas”.

A luta pela PrEP apresenta um novo desafio à interdependência das empresas farmacêuticas e do governo, desenvolvida ao longo de anos de colaboração.

“O governo não está envolvido em uma batalha por lucros, como uma empresa privada, mas os funcionários do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas (NIH) e do CDC encorajam a comercialização de descobertas financiadas pelo governo, não colocando freios nelas”, disse o professor e especialista em patentes da Georgetown Law, Neel U. Sukhatme.

“Eles podem não querer estar na posição de processar essas empresas que estão produzindo coisas valiosas”, disse o professor.

Mas essa postura é cada vez mais desafiada pela raiva política em relação aos altos preços dos medicamentos. Defensores do consumidor e membros do Congresso aumentaram as exigências para que o governo exerça seus direitos baseado na lei existente para licenciar a concorrência ou a importação de genéricos durante períodos de escassez ou picos de preços injustificados; vários projetos de lei reforçariam essas disposições de “licenciamento compulsório”.

O caso de Gilead e Truvada para a PrEP representa uma nova virada neste debate, com demandas de que o governo seja mais agressivo no exercício de sua própria patente para aliviar os efeitos de custo de um monopólio.

Autoridades do governo não discutiram nenhum aspecto das medidas que tomaram para fazer valer a patente do CDC.

“Quando se trata de conversas com empresas, esses são assuntos sobre os quais não temos liberdade de falar”, disse o diretor do escritório do NIH, Michael R. Mowatt, que representa o CDC no licenciamento de patentes.

O próprio CDC não respondeu a várias solicitações de comentários.

A Gilead disse que foi contactada pelo CDC sobre o licenciamento do Truvada para a PrEP em 2016.

Em uma declaração por escrito em resposta a perguntas do The Washington Post, a farmacêutica Gilead informou que ocorreram várias discussões por telefone e a troca de cerca de meia dúzia de cartas abordando as preocupações e posições das partes, mas a empresa não revelou o conteúdo das ligações e cartas, argumentando um acordo de confidencialidade com o CDC.

Em fevereiro, o presidente Donald Trump estabeleceu uma meta para a erradicação do HIV/Aids até 2030. Para se aproximar desse objetivo, os especialistas advertem que o uso do Truvada como PrEP precisa ser muito mais difundido. O plano orçamentário de Trump prevê um adicional de US$ 291 milhões para combater a doença.

A Gilead começou a comercializar o Truvada em 2004, quando o Food and Drug Administration (FDA) aprovou o medicamento para tratar pessoas que já estavam infectadas pelo HIV. O FDA é a agência federal responsável pela proteção e promoção da saúde pública no país.

Na mesma época, pesquisadores do CDC estavam procurando por medicamentos com potencial para conter ou mesmo acabar com a epidemia, impedindo a infecção por HIV por pessoas saudáveis, mesmo que elas praticassem sexo desprotegido. Na ocasião, a Gilead trabalhou com o governo, fornecendo gratuitamente doses de Truvada para testar nos macacos dos laboratórios do CDC, em Atlanta.

Depois que o Truvada mostrou funcionar como profilático em primatas, o CDC solicitou suas patentes. Isso deu início a um esforço de nove anos, usando dois escritórios externos de advocacia contratados pelo CDC, que apresentaram seus argumentos aos examinadores de Patentes e Marcas Registradas dos EUA.

Os Institutos Nacionais de Saúde concederam subsídios para realizar mais estudos, desta vez em ensaios clínicos em seres humanos. O estudo de Grant, liderado por seu laboratório em San Francisco e publicado em 2010, no New England Journal of Medicine, provou que a droga reduziu o risco de contrair o HIV em mais de 92% dos casos.

Além de US$ 50 milhões em dinheiro do governo, US$ 17 milhões para o estudo vieram da Fundação Bill & Melinda Gates, disse Grant.

Com base nesses ensaios clínicos em humanos, a Gilead recebeu aprovação para comercializar o Truvada para PrEP, a nova indicação, em 2012.

A Gilead trabalha frequentemente em cooperação com agências federais de pesquisa para o desenvolvimento de medicamentos para combater doenças infecciosas como HIV/Aids, hepatite B e hepatite C, as três epidemias que atraíram intensa atenção do governo. Mas a farmacêutica é criticada por preços excessivos; em 2013, provocou um alvoroço quando o preço de um tratamento de 12 semanas contra hepatite C, utilizando o Sovaldi® foi de US$ 84 mil.

O preço do Truvada para PrEP incomoda ativistas há anos. Para eles, embora o medicamento seja coberto pela maioria dos seguros privados e do governo, o alto custo do medicamento pago pelos programas estaduais do Medicaid tira o dinheiro que poderia ser investido em esforços de educação e distribuição.

Gilead desrespeita patentes do governo

Em 2016, autoridades federais estimaram que menos de 10% dos 1,1 milhão de pessoas que deveriam estar em tratamento com a PrEP estavam recebendo o Truvada. A Gilead informa que atualmente o índice de pessoas atendidas “melhorou” e já atinge os 20%. O problema é particularmente agudo nos estados do Sul, onde as barreiras culturais e a falta de programas educacionais estão atrasando seu uso.

Krellenstein e outros ativistas começaram a descobrir fatos sobre as patentes do CDC no ano passado e, em seguida, encomendaram um relatório sobre sua validade, que eles compartilharam com o The Post. A revisão externa foi conduzida pelo especialista em patentes Christopher J. Morten, pesquisador do Global Health Justice Partnership, um programa da Yale Law School e da Yale School of Public Health.

“O CDC fez uma defesa bem-sucedida de sua patente na Europa reforçando que são legítimas. Não tenho motivos para acreditar que essas patentes não sejam válidas e exequíveis. Além disso, elas parecem ser infringidas (pela Gilead0 pelo uso do Truvada para a PrEP”, afirmou Morten.

Em uma entrevista, Morten destacou que os ativos gerados com dinheiro público estão efetivamente sendo desperdiçados.

A empresa se defende

A Gilead comunicou que o governo errou ao afirmar que inventou o uso do Truvada para a prevenção do HIV. E que o Truvada já estaria sendo usado por médicos e pacientes em modo “off-label”, modalidade não aprovada pela FDA, antes do pedido de patente da CDC em 2006.

Para a empresa, as patentes não refletem as contribuições dos cientistas da Gilead, que colaboraram com o CDC para projetar os estudos de macacos que fundamentam as patentes, além da Gilead ter fornecido o Truvada gratuitamente para o estudo dos primatas.

A patente do Truvada, que pertence à Gilead, expira em 2021. Pode levar pelo menos mais dois anos até que a farmacêutica enfrente uma competição de baixo custo nos Estados Unidos.

Preços e lucros

Em resposta às reclamações sobre preços, a Gilead se defende divulgando que oferece cupons de desconto mensais para pacientes que não tem seguro, que reduzem o custo do medicamento para menos de US$ 5. A empresa alega que gastou US$ 138 milhões desde 2012 em programas de subsídios comunitários para conscientizar e educar pessoas em risco.

Desde 2004, a Gilead já faturou com o Truvada US$ 36,2 bilhões de acordo com seus relatórios anuais.

Ativistas e pesquisadores em HIV/Aids dizem que os benefícios dos cupons são enganosos e que, na verdade, conseguir obter os cupons da Gilead para o uso do Truvada como PrEP é um processo complicado.

“Se o CDC aproveitasse suas patentes para obter dinheiro para o Truvada, isso poderia ajudar os programas estatais carentes do Medicaid a realizar programas agressivos de educação e distribuição. A Virginia Medicaid disse que paga US$ 54,04 por comprimido, ou US$ 1,62 mil por cada mês de tratamento”, disse o ativista do HIV/Aids, Christian Urrutia. “O que estamos vendo é que como os governos municipais e locais estão gastando demais para obter a PrEP e não está sobrando dinheiro”.

Traduzido de The Washington Post

Com imagem de The Washington Post