O uso das leis para garantir direitos está sendo substituído pela cadeia para parte da população brasileira. A afirmação foi feita pelo representante da Associação Brasileira Internacional de AIDS (ABIA), Pedro Villardi, que também é coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), nesse domingo (22), durante a segunda Pré-Conferência do Desafio Global da Criminalização, realizada em Amsterdã, na Holanda.
O evento faz parte da programação que antecede a Conferência Internacional de AIDS (AIDS 2018), que inicou na manhã desta segunda-feira (23) e segue até sexta-feira (27).
Confira a cobertura no Twitter, em inglês, pela hashtag #challengecrim
A relação entre Direito Penal e HIV, apresentada por Villardi, mostrou como o avanço das políticas de direita no mundo, refletida no Brasil a partir da forte presença de deputados e senadores conservadores atualmente no Congresso, apontou como o poder legislativo direciona a formulação de leis para tentar punir grupos vulneráveis da população.
Para Villardi, é fundamental que o Brasil supere os referenciais punitivos, que foram importados para a criação das leis do país ainda nos idos do Código Penal Republicano de 1890, na ocasião, um dispositivo legal já criminalizava médicos que não divulgassem os nomes dos pacientes que tinham doenças contagiosas.
“Esta disposição é o antecedente do artigo do Código Penal de 1940, que define a transmissão de doenças contagiosas como crime, que é uma lei sob a qual a transmissão do HIV pode ainda ser criminalizada hoje”, explicou. Villardi também explicou que, em 2005, uma reforma parcial do Código relativo ao estupro, definiu a transmissão do HIV como uma circunstância agravante que implica penas crescentes, mesmo o estupro sendo considerado crime hediondo.
Desde o início do ano 2000, seguem tentativas em série para estabelecer leis que criminalizem a transmissão do HIV, mas que foram impedidas pela forte pressão da sociedade civil, apoiada pelo Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das ISTs, do HIV/Aids e das Hepatites Virais, do Ministério da Saúde (MS) e Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS).
Para Villardi, a sociedade civil deve estar mobilizada para defender os avanços conquistados pela luta contra o estigma e a discriminação, que se mantém sob constante disputa e ameaça pelas forças conservadoras.
Veja a fala completa:
Meu nome é Pedro Villardi, sou coordenador de projetos da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids. É um prazer estar aqui. Obrigado pelo convite.
A ABIA tem trabalhado desde a sua criação no campo do HIV, mas com uma perspectiva mais ampla de desenvolver a cidadania e, em última análise, a própria democracia. A cultura de direitos nunca foi totalmente fundamentada no Brasil e, por isso, o cumprimento do direito à saúde no SUS – o sistema público de saúde brasileiro – está constantemente sob ameaça.
Os pensamentos que eu gostaria de apresentar hoje reunem dois importantes elementos do debate em torno da cidadania e da democracia no Brasil: o direito penal e o HIV.
Começarei trazendo algumas breves reflexões sobre a epidemia do HIV no Brasil e no mundo.
Não há necessidade de lembrar o grande estigma e preconceito enfrentado pelas Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA) desde os primeiros dias da epidemia. Herbert Daniel, um dos mais importantes pensadores e ativistas do campo da Aids no Brasil, desenvolveu o conceito de “morte civil” para se referir ao estado em que a pessoa que recebeu o diagnóstico positivo estava nos primeiros dias da epidemia. Em outras palavras, a pessoa foi despojada de todos os seus direitos e privada de sua cidadania, incluindo o direito à saúde. Este conceito ainda é muito válido hoje em dia. Por diferentes razões, é claro. Naquela época, não havia uma política de acesso a medicamentos estabelecida, muitas cidades não dispunham de nenhum programa para lidar com a epidemia e praticamente não havia informações em relação à própria epidemia, o que gerava cada vez mais estigma e discriminação.
É justo dizer que uma parte importante do trabalho desenvolvido por organizações de HIV/Aids, em todo o mundo, foi e está relacionada à luta contra o estigma e a discriminação. E temos que reconhecer que evoluímos significativamente. No entanto, tal conquista não se sustenta – é objeto de constante disputa e está atualmente sob ameaça. Já estamos vendo partes importantes da política brasileira contra a Aids estarem em perigo devido ao surgimento de poderosas forças conservadoras.
É amplamente sabido que o acesso a ferramentas de prevenção, diagnóstico e tratamento está intimamente relacionado para diminuir a discriminação contra PVHA. Quanto menos ameaçada a pessoa se sente de sofrer algum tipo de violência – mental ou física – é mais provável que ele ou ela tenha acesso a um centro de saúde e tenha seu direito garantido. No entanto, existem iniciativas que podem dificultar o acesso à saúde, como prevenção, diagnóstico e tratamento, como a criminalização da transmissão do HIV/Aids.
Então, para entender melhor as condições sob as quais a transmissão do HIV é criminalizada no Brasil, é necessário voltar à história de nossas leis criminais. Em primeiro lugar, muitos elementos do direito penal da Europa Ocidental moderna (em particular o Código Penal de Napoleão de 1810), que foram transportados para países da independência pós-independência da América Latina, ainda existem hoje. Um dos exemplos mais evidentes é a criminalização do aborto. Deve-se notar também que o primeiro código penal republicano brasileiro foi aprovado em 1890, um ano antes que a nova constituição republicana estivesse em vigor, sendo este um forte sinal da centralidade do poder punitivo na cultura política e legal do país.
Este primeiro Código Republicano de 1890 já criminalizava os médicos que não divulgavam os nomes dos pacientes afetados por doenças contagiosas, o que poderia afetar a saúde pública. Esta disposição é o antecedente do artigo do Código Penal de 1940 que define a transmissão de doenças contagiosas como crime, que é uma lei sob a qual a transmissão do HIV pode ainda ser criminalizada hoje. Este artigo em particular não foi reformado, mas, em 2005, uma reforma parcial do Código relativo ao estupro, definiu a transmissão do HIV como uma circunstância agravante que implica penas crescentes. Este agravamento é totalmente desnecessário, uma vez que desde 1988, o estupro foi definido como um crime hediondo e pode ser visto como um exemplo de hipercriminação.
A punição da transmissão do HIV é, portanto, solidamente incluída em duas seções do atual Código Penal. Mesmo assim, desde o início do ano 2000, uma série de leis foram apresentadas no Congresso para criminalizar especificamente a infecção pelo HIV. Entre 2015 e 2018, o Law Bill 198/2015 foi constantemente processado em várias comissões que propunham que a transmissão do HIV se tornasse um crime hediondo. Sua aprovação final foi bloqueada pela pressão e defesa da sociedade civil, que contou com o apoio do Departamento Nacional de HIV/Aids, DST e Hep e do escritório do UNAIDS no país.
No entanto, outras propostas com conteúdo semelhante também foram apresentadas e certamente seriam apoiadas pelo agora dominante bloco conservador no Congresso.
Atualmente, há uma outra iniciativa na Câmara dos Deputados no Brasil para tipificar o crime de “perigo de transmitir doenças incuráveis”, com dois a oito anos de prisão. Estamos engajados em ações de advocacy para bloquear a aprovação deste projeto de lei. A justificativa do projeto de lei baseia-se apenas no “pânico moral”, após uma história distorcida do Fantástico, um programa de TV semanal de domingo à noite da Rede Globo, que apresentou uma história em que pessoas soropositivas se reuniam para ensinar as pessoas a transmitir o HIV. O que não se aproxima, no entanto, são as descobertas científicas sobre como uma pessoa indetectável não transmite o HIV, ou como é difícil comprovar a transmissão do HIV.
Embora o atual Congresso seja extremamente conservador – o mais conservador desde o ano 1964 do golpe militar brasileiro – essa tendência não é exatamente tão nova. Desde os anos 1980, o Brasil viu a mesma intensificação da criminalização analisada por Lois Wacquant como um dos principais efeitos da erosão gradual dos estados de bem-estar social (o que explica no Brasil, como nos EUA, o crescimento exponencial do encarceramento após os anos 1980). No Brasil, uma sociedade extremamente desigual, deve-se lembrar que o Estado de Bem-Estar nunca existiu em sua forma plena, o que torna os efeitos da criminalização ainda mais seletivos e excludentes, afetando principalmente os mais pobres, particularmente a população negra.
O que acontece na prática quando um país adota uma lei criminal dessa natureza? Alguém que é considerado culpado é identificado. Isso mobiliza as paixões sociais em relação a essa pessoa que passa a ser vista como “o” único responsável pela transmissão do vírus que mata, por causa de seu “comportamento irresponsável”. E quando o foco (de direito, política, debate público) isola essa pessoa ou um pequeno grupo, outros aspectos mais relevantes que explicam a propagação da epidemia são retirados do debate. O debate em torno do gerenciamento de risco e risco se torna um tabu.
Mas temos que entender essa iniciativa em uma perspectiva muito mais ampla. Como tentei mostrar no início da apresentação, a lei criminal tem sido uma ferramenta para controlar corpos e comportamentos, especialmente daqueles que hoje chamamos de populações vulneráveis. Portanto, a Lei que pretende criminalizar a transmissão deve ser entendida de forma interseccional; não apenas relacionado ao HIV, mas relacionado a outros comportamentos e populações que devem ser “controlados”. O fato de que os comportamentos sexuais, a transmissão do HIV, entre outras coisas, estão sendo abordados na arena do direito penal, revela uma perspectiva em que o cumprimento dos direitos a uma parte específica da população é substituído pela cadeia.
Mesmo que isso esteja longe de ser uma nova tendência, a peculiar conjuntura política também deve ser levada em conta. Em todo o mundo estão assistindo a ascensão da direita ou mesmo dos governos fascistas. Esses governos têm uma agenda política clara contra os direitos de LGBT, mulheres e outras minorias. O que é novo é o uso da criminalização do comportamento como uma agenda moral alinhada a uma agenda comercial, ou seja, a privatização de serviços públicos básicos, como o abastecimento de água e de prisões e o uso de pânico moral para expandir o aparelho criminoso. Em suma, gostaria de propor que pensássemos em termos de tendências de criminalização interseccional, tentando pensar no quadro mais amplo para poder enfrentar os próximos tempos difíceis.
Com imagem de Aids Accountability
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