Após vinte anos de negociações, o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a União Europeia (UE)
chegaram a um Tratado de Livre Comércio (TLC) que promete criar um novo mercado
combinado de 800 milhões de pessoas [1]. O acordo eliminará 93% das tarifas sobre as
exportações do Mercosul e 91% das tarifas sobre as exportações da UE [1]. Com as reduções
tarifárias aplicadas a ambos os blocos comerciais, o Mercosul e a UE reivindicaram o acordo
como uma vitória para seus respectivos partidos – embora acordos de livre comércio tenham o
potencial de reduzir as disparidades entre países de alta e baixa renda, há sérias razões para
considerar que este acordo prioriza os interesses lucrativos da UE sobre as necessidades de
desenvolvimento do Mercosul.

Presumindo que uma redução nos direitos aduaneiros reduziria o custo dos medicamentos
importados, a decisão do Mercosul de eliminar os direitos alfandegários de 14% sobre
produtos farmacêuticos exportados pela UE ilustra o desejo do Mercosul de ter acesso a
futuras inovações farmacêuticas da UE [2]. Embora o potencial acesso do Mercosul a futuros
desenvolvimentos farmacêutico pareça ser um benefício significativo do TLC, o verdadeiro
impacto do acordo não promove uma indústria farmacêutica auto-sustentável em nenhuma
nação do Mercosul, ele simplesmente preserva o status quo.

Ao longo do processo de negociação, a UE tem pressionado fortemente por disposições de
Propriedade Intelectual (PI) que criem monopólios de patentes adicionais e mais longas sobre
medicamentos essenciais – tais disposições são conhecidas como medidas TRIPS-Plus, porque
vão além do padrão regular estabelecido pelo Acordo TRIPS da Organização Mundial de
Comércio (OMC). Graças à pressão intensa e contínua das organizações da sociedade civil dos
países do Mercosul (especialmente da ABIA/GTPI no Brasil), diferentes gerações de
negociadores comerciais impediram a adoção de medidas TRIPS-Plus, dado seu impacto
negativo no direito à saúde. Comparando versões vazadas do texto de 2016 e 2018 com o
texto final do acordo, é notável que nenhuma das propostas do TRIPS-Plus da UE tenha sido
incluída. No entanto, a versão final do texto divulgado não contém todos os artigos do capítulo
de PI [1], causando assim incerteza sobre seu escopo completo.

Apesar da vitória na remoção das medidas TRIPS-Plus, nenhum progresso foi feito em
direção a uma nova abordagem para inovação médica ou monopólios de patentes. Na União
Europeia, há uma dinâmica crescente em torno dos altos preços dos medicamentos e da
necessidade de um sistema farmacêutico novo e inovador; e nos países do Mercosul, os
debates de longa data sobre os vieses inatos do acordo TRIPS e a necessidade de alternativas
continuam a dominar o discurso público – ainda que, apesar da preocupação comum com a
indústria farmacêutica, o TLC não se compromete a fomentar pesquisas e incentivos ao
desenvolvimento ou inovação adaptados às disposições de acesso.

Nesse sentido, ao sustentar as rígidas disposições de direitos de propriedade intelectual (DPI)
recomendadas pelo acordo TRIPS, o acordo entre Mercosul e UE perpetua uma dinâmica de
poder injusta onde o Norte global é incentivado a lucrar com o Sul global. Embora tanto o Mercosul quanto a UE
tenham declarado o TLC como mutuamente benéfico, os vieses inatos de
um TLC com fortes regulamentações de DPI sempre favorecerão grandes exportadores líquidos
de propriedade intelectual. Considerando a quantidade limitada de conhecimento técnico
prontamente disponível para difusão internacional e a falta de infraestrutura interna para o desenvolvimento de medicamentos genéricos e inovadores nos países do Mercosul, este
acordo de livre comércio garante que o acesso do Mercosul à indústria farmacêutica da UE
continue limitado pelas barreiras de mercado impostas pelos titulares das patentes da UE.

Embora alguns possam argumentar que o acordo sinaliza uma abertura para ambas as partes
para compartilhar de forma livre e equitativa o conhecimento técnico, os detalhes do DPI e as
recentes ações domésticas tomadas pela UE retratam uma realidade diferente [1]. Partindo do
desejo de manter o controle das patentes da sua atual lista de medicamentos, a UE garantiu a
inclusão de disposições abrangentes sobre a proteção de segredos comerciais e direitos de
propriedade intelectual antes de aceitar o TLC [2]. Esta compulsão de proteger os segredos
comerciais e os direitos de propriedade intelectual, ao invés de difundir os avanços potencias
de salvar vidas nos países do Mercosul, expõe os verdadeiros objetivos de lucro da UE. Esses
objetivos são ainda mais ilustrados pela recente adoção de Certificados de Proteção
Suplementar pela UE que podem estender patentes por até mais cinco anos na EU [3]. Ao
incentivar internacionalmente a adesão estrita aos regulamentos do TRIPS, enquanto adota
domesticamente os regulamentos do TRIPS-plus, a UE parece valorizar monopólios sobre
inovação farmacêutica e produção de medicamentos.

Além do controle sobre o crescimento e o desenvolvimento das indústrias do Mercosul, a UE
também usou o TLC para obter acesso aos processos de compras governamentais das nações
do Mercosul [1]. Com as compras governamentais servindo como uma via significativa para o
investimento local, a invasão da UE a ess processo enfraquece o poder de compra dos
governos nacionais do Mercosul [4]. Dado o desequilíbrio de poder entre os dois blocos
comerciais, a decisão da UE de interferir no estímulo das economias nacionais é predatória e
extremamente injusta. Além disso, o acordo também inclui medidas de recrudescimento de
DPI (conhecidas em inglês por IP Enforcement) no escopo de regulamentações personalizadas.

Este acréscimo poderia implicar em medidas fronteiriças sobre PI que proporcionam às
autoridades alfandegárias o poder de apreender e destruir medicamentos genéricos com base
na suspeita de infração de DPI. Episódios de apreensão equivocada de medicamentos
genéricos legítimos em trânsito já ocorreram na alfândega européia onde tais
regulamentações existem, uma perspectiva que poderia prejudicar significativamente o acesso
do Mercosul a medicamentos.

Embora o acordo de livre comércio entre Mercosul e UE crie um mercado maior para setores
como a agricultura e a carne, o TLC não faz nada para garantir que o Mercosul desenvolva a
capacidade tecnológica para manter sua população saudável [1]. As disposições sobre direitos
de propriedade intelectual incluídas neste acordo não oferecem proteções contra indústria de
patentes farmacêuticas orientada para o lucro e deixa os preços de medicamentos que salvam
vidas sob os auspícios de donos de patentes de medicamentos gananciosos. O futuro do
acesso universal a medicamentos depende da acessibilidade dos medicamentos essenciais e
da concorrência dos medicamentos genéricos – e sem quaisquer compromissos claros para a
equidade na saúde neste acordo, parece improvável que a UE sacrifique voluntariamente os
seus lucros farmacêuticos para satisfazer as necessidades de uma demanda constante do
Mercosul [5].

Embora muitas das seções do TLC possam não impactar diretamente o acesso a
medicamentos, outras provisões podem se mostrar prejudiciais a longo prazo para as
populações mais vulneráveis da América do Sul. Depois de trabalhar duro para impedir a
inclusão de medidas TRIPS-plus no acordo, chegou a hora da sociedade civil apresentar uma
frente unida contra outras medidas que possam impedir o cumprimento dos direitos humanos,

como o direito à saúde, durante os debates nos Congresso Nacional. A sociedade civil e os
movimentos sociais devem pressionar as autoridades eleitas a rejeitar a legislação que coloca
o lucro sobre as pessoas, e deve permanecer vigilante à medida que o acordo de livre
comércio entra nas fases finais de negociação.

Referências:
1. Brunsen, J., Schipani A., Harris B., & Mander B. (2019, June 30). EU-Mercosur Trade
Deal: What It All Means. Retrieved from https://www.ft.com/content/a564ca96-99e7-
11e9-8cfb-30c211dcd229

2. European Commission. (2019). Key elements of the EU-Mercosur Trade Agreement.
Retrieved from http://europa.eu/rapid/press-release_QANDA-19-3375_en.htm

3. Wodecki, B. (2019, July 3). EU SPC Waiver for Generics Comes Into Force. Retrieved
from http://www.ippromagazine.com/ippromagazinenews/article.php?article_id=6842

4. Rede Brasileira Pela Integração dos Povos . (2019). The European Union – MERCOSUR
Agreement: still an avoidable tragedy. Retrieved from http://gapwatch.org/wp-
content/uploads/2019/07/Rebrip_FTA_2019.pdf

5. Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS. (2017, May 22). International Conference
on the Politics of Access to Medicines and Human Rights (Brazil). Retrieved
from http://gapwatch.org/news/international-conference-on-the-politics-of-access-to-medicines-
and-human-rights-rio-de-janeiro-brazil/928