O não fechamento do acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul em dezembro do ano passado, em Buenos Aires, na Argentina, pode jogar a negociação entre os dois blocos comerciais em um novo período de desaceleração, isso em função do calendário político e a situação de países-chave como Brasil e Alemanha. Entretanto, o momento não pode ser considerado de descanso para a sociedade civil, em especial para movimentos que atuam pelo amplo direito de acesso a medicamentos essenciais e questões sobre propriedade intelectual.

“É importante entender que no pano de fundo geral deste acordo está a barganha de um bloco de países em desenvolvimento, que fornecem produtos primários, em troca de bens industriais de países desenvolvidos”, explicou o assessor da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) e economista do Dieese, Adhemar Mineiro.

Para Mineiro, as resistências à consolidação do acordo refletem os interesses de setores sociais, no caso das patentes, a discussão chega a um ponto sensível das políticas de acesso a medicamentos, principalmente sobre a produção de genéricos e as condições de financiamento de políticas públicas de saúde na zona do Mercosul.

“Esta disputa, sob este pano de fundo, acaba não dando condição de saber se, nas mesas de negociação, existe realmente uma preocupação em preservar as condições de manutenção das políticas públicas ou é uma moeda de troca para valorizar concessões na área da Agricultura, por exemplo”, sobre o acordo que tem o objetivo de reduzir as barreiras comerciais entre os 28 países da UE e os quatro membros efetivos do Mercosul: Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, bem como os países associados Chile, Bolívia, Colômbia, Peru, Equador, Suriname e Guiana (a Venezuela está suspensa desde 2012).

A sobrevivência do SUS em jogo

O coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), Pedro Villardi, considera que independente dos interesses estarem explícitos ou não, a sociedade civil deve manter-se atenta a todas as fases da negociação, especialmente diante de propostas do bloco europeu, como a que pede a ampliação do já extenso período de 20 anos da vigência de patentes, previstos na lei brasileira 9.279/96.

“Na prática, a legislação do Brasil já assegura o monopólio de uma empresa sobre medicamentos por muito tempo, o que faz a nova proposta ser absurda sob vários aspectos e o principal deles é a ameaça direta à sustentabilidade de sistemas de saúde pública como o SUS”, explicou.

A preocupação de Villardi está em sintonia com o relatório da análise de impacto da proposta européia, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz e Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), divulgada em setembro de 2017. O estudo identificou que a extensão de prazo de patente resultaria em uma despesa adicional de cerca de US$ 444 milhões no orçamento do Ministério da Saúde, em comparação com os preços internacionais mais baixos, em seis medicamentos: três para o HIV (darunavir, etravirina, raltegravir); dois para hepatite C (sofosbuvir, daclatasvir) e um para câncer (dasatinib).

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O pedido da UE pela “exclusividade de dados” é outra preocupação exposta por Villardi, que a considera na prática como o fim dos genéricos na região. “Com essa medida, a agência sanitária não pode usar as informações da empresa que registrou o medicamento pela primeira vez para comparar com o pedido de registro do medicamento genérico. A lei brasileira só exige que o medicamento seja igual, logo, sem este parâmetro fica impossível produzir e manter a política de genéricos”, ressaltou.

Conjuntura desfavorável ao acordo

Em dezembro, os ministros das Relações Exteriores da Argentina, Jorge Faurie, e do Brasil, Aloysio Nunes, declararam publicamente que tudo estava sendo feito para o acordo da Mercosul-UE fechar “o mais rapidamente possível”, mas nada foi concretizado, o que na avaliação do economista Adhemar Mineiro, trouxe as negociações para uma conjuntura desfavorável neste início de ano.

“Agora está tudo mais difícil pq não há um governo funcionando na Alemanha e entramos num período de proximidade dos cenários de eleição no Brasil”, comentou Mineiro. Ele cita a indefinição da nova composição do governo da Alemanha, que vive uma instabilidade política que se estende desde o resultado das eleições legislativas, em setembro do ano passado, à perspectiva de fechamento de um acordo apenas em abril de 2018, entre os grupos políticos da presidenta eleita Angela Merkel (CDU) e o socialdemocrata Martin Schutz (SPD). Dois cenários eleitorais em países-chave que não favoreceriam a um desfecho para os blocos continentais em curto prazo.

Negociações passam de duas décadas

A costura do acordo comercial entre Mercosul e UE foi iniciada no começo anos 90 e seguiu até 2004, quando houve uma paralisação. Em 2010, as conversas foram retomadas até que nos últimos dois anos (2016 e 2017) o processo finalmente acelerou. A proposta de livre-comércio envolveria 90% do comércio entre os dois blocos. As negociações coincidem com uma mudança na politica dos Estados Unidos para um viés protecionista após a posse do presidente Donald Trump e sua preferencia por negociações bilaterais em vez de multilaterais.

Protesto gigante na Argentina

Em dezembro, movimentos do mundo inteiro, em especial da América Latina, se reuniram na Semana de Ação Global Contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), em Buenos Aires, na Argentina, para protestar contra as propostas de forte viés neoliberal da União Europeia no acordo de livre comércio com o Mercosul.

Manifestações diárias marcaram a segunda semana de dezembro na capital argentina ao mesmo tempo em que ministros de 164 países discutiam o acordo global. No dia 13, uma passeata com cerca de trinta mil pessoas contra o acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. O GTPI participou dos atos contra os efeitos do acordo sobre o acesso a medicamentos com uma delegação de 25 ativistas, que se uniram a representantes de outras organizações do continente que atuam pelo fim das patentes sobre medicamentos essenciais.

Imagem do Observatório de Negociações Internacionais da América Latina