A/o(s)

Excelentíssima Ministra da Saúde Nísia Trindade

Excelentíssima Ministro das Relações Exteriores Embaixador Mauro Vieira

Missão Permanente do Brasil em Genebra

Nós, grupos da sociedade civil e acadêmicos abaixo assinados do Brasil que lutam pelo direito à saúde de forma ampla, considerando o espírito de solidariedade, universalidade, justiça social e equidade que inspiram a promoção do direito à saúde em nosso país e são a base do Sistema Único de Saúde, e acreditando que esses princípios devem reger também a promoção do direito à saúde a nível internacional, expressamos nossa profunda preocupação com o Tratado de Pandemias. Embora reconheçamos a urgência da adoção de um acordo internacional desse escopo, esse acordo deve incluir medidas e mecanismos concretos que transformem o status quo, operacionalizam a equidade e promovam a solidariedade internacional para a prevenção, preparação e resposta à pandemia. Nesse sentido, pedimos que o Brasil não adote um acordo a qualquer custo e que defenda a continuidade da negociação seguindo um processo justo até chegarmos a um acordo que seja guiado por solidariedade, justiça, transparência, inclusão e equidade.

A versão atual do texto do acordo, que será discutida na continuação da 9ª sessão do Órgão de Negociação Intergovernamental (INB), é desequilibrado e tendencioso em favor das demandas dos países desenvolvidos em detrimento dos interesses dos países em desenvolvimento. O documento não incorpora medidas e mecanismos substanciais para auxiliar as nações em desenvolvimento na prevenção, preparação e resposta a pandemias. Conforme explicado abaixo, não há disposições significativas que forneçam concretamente apoio financeiro, transferência de tecnologia e permitam o compartilhamento de tecnologia proprietária e know-how com os países em desenvolvimento. Também não há nenhuma disposição que garanta o acesso rápido e adequado aos produtos de saúde necessários aos países em desenvolvimento para lidar com uma pandemia.   

Em vez disso, o texto impõe obrigações onerosas de vigilância com a expectativa de que materiais biológicos, dados de sequência e outras informações relevantes sejam compartilhados com as nações desenvolvidas, sobrecarregando desproporcionalmente os países em desenvolvimento, especialmente na ausência de garantia de fornecimento incondicional de apoio financeiro e tecnológico ou acesso a produtos de saúde. De fato, o texto é desprovido de qualquer equidade, mantendo o status quo que contribuiu para a grande desigualdade vivida pelas nações em desenvolvimento durante a COVID-19 e outras emergências de saúde. Pior ainda, o texto preliminar acrescenta obrigações de vigilância onerosas que, com o tempo, serão expandidas ainda mais, o que pode afetar negativamente os países em desenvolvimento. 

Um grande desafio no processo do INB tem sido o processo de negociação conduzido pelo Bureau e pelo Secretariado da OMS, no qual o texto proposto por Estados Membros é repetidamente deixado de lado em favor do texto elaborado pelos próprios Bureau e Secretariado.

Nesse contexto, é imperativo que o Brasil não endosse o texto do Acordo sobre Pandemia, conforme proposto pelo Bureau e pela Secretaria da OMS. Ele significa uma ameaça aos países em desenvolvimento. Em vez disso, o Brasil deve insistir em negociações textuais lideradas pelos próprios Estados Membros nessa continuação da sessão do INB 9. De forma prática, as propostas dos Estados Membros devem ser refletidas na tela para que eles possam negociar para chegar a um consenso, seguindo os princípios e diretrizes das negociações internacionais, conforme estabelecido na Resolução 53/101 da AGNU.

Em particular, gostaríamos de destacar os seguintes pontos:

  1. Os artigos 4, 5 e 6 do texto proposto do Acordo determinam que cada Parte realize atividades de vigilância abrangentes, excedendo o que é pertinente e essencial para lidar com uma pandemia. Essas obrigações marcam apenas o início de uma série de exigências que os países em desenvolvimento deverão implementar. Podemos prever outras obrigações, já que o Artigo 4.4 permite o desenvolvimento de outras diretrizes, recomendações e padrões, juntamente com a futura abordagem de Saúde Única (ou One Health) especificado no Artigo 5.4 do texto proposto. A base das obrigações estabelecidas nesse artigo é a expectativa de que os países em desenvolvimento compartilhem materiais biológicos, dados de sequência e outras informações com a OMS e outras entidades (como laboratórios) de países desenvolvidos. O Artigo 6.5 estabelece um sistema de monitoramento e avaliação destinado a responsabilizar os países em desenvolvimento pelas obrigações previstas nos Artigos 4 a 6. 

Essas disposições obrigam os governos a estabelecer uma ampla infraestrutura de vigilância, que consequentemente desviaria recursos já limitados das prioridades nacionais. Com o instrumento de Saúde Única também poderia haver consequências comerciais e econômicas adversas para os países em desenvolvimento. As respectivas obrigações são propostas sem proporcionalidade às nações desenvolvidas para fornecer assistência financeira e tecnológica incondicional, bem como para garantir o acesso equitativo nos países em desenvolvimento. Além disso, esses artigos determinam o compartilhamento de dados gerados por meio da vigilância, mas são omissos quanto à regulamentação do uso de dados pelas partes, pela OMS e por outras organizações internacionais, exemplos como a transferência adicional de dados obtidos das partes e o possível uso indevido, o que representa uma ameaça à integridade e ao objetivo do instrumento.

  1. O Artigo 7 traz disposições relacionadas à força de trabalho de saúde e assistência. O texto compartilhado em 18 de abril é um retrocesso em relação ao texto compartilhado antes do INB9 (divulgado em 8 de março) e um golpe ainda mais cruel nos direitos dos trabalhadores da saúde e da assistência. Em sua versão atual, o texto não faz referência ao “trabalho decente”, um conceito central e operativo; não possui uma disposição sobre diálogo social; não aborda disparidades, desigualdades, discriminação, estigma e preconceito; não possui uma linguagem que aborde as desigualdade de gênero e geracional; não menciona a necessidade de abordar a violência e o assédio contra esses profissionais; não inclui nenhuma referência à promoção e/ou proteção da saúde mental e do bem-estar dos trabalhadores. As cláusulas relacionadas aos tópicos mencionados acima foram removidas do texto de 8 de março ou suas propostas de inclusão não foram consideradas pelo Bureau. Diante das demandas compartilhadas pelos trabalhadores da saúde e da assistência ao longo do processo de negociação do Tratado, o artigo 7 é inaceitável. O texto atual não acrescenta praticamente nada aos direitos e necessidades dos profissionais de saúde e assistência, especialmente à luz das dificuldades enfrentadas por aqueles que foram considerados heróis durante a pandemia da COVID-19.
  1. Os artigos 9, 10 e 11 tratam de pesquisa e desenvolvimento, produção sustentável e geograficamente diversificada e transferência de tecnologia. No entanto, todas as cláusulas referentes à transferência de tecnologia permanecem discricionárias, voluntárias e dependentes de termos mutuamente acordados, uma abordagem que falhou de forma desastrosa em fornecer acesso equitativo durante a COVID-19. Mesmo nos casos que envolvem tecnologias financiadas com recursos públicos, não há garantia de que elas serão disponibilizadas. A provisão para produção diversificada carece de eficácia na ausência de medidas que reconheçam a importância de tais instalações de produção e garantam que elas sejam suficientemente financiadas e equipadas tecnologicamente. De forma significativa, a forma como esses artigos estão redigidos ignora os obstáculos que as nações em desenvolvimento encontram ao utilizar as flexibilidades estabelecidas pelo Acordo Sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual (TRIPS) para mitigar os impedimentos que a propriedade intelectual promove à produção e ao fornecimento de produtos essenciais à saúde.
  1. O Artigo 12 aborda o Sistema de Acesso e Compartilhamento de Benefícios para Pandemias (PABS), mas não incorpora as demandas cruciais articuladas pelos países em desenvolvimento (o Grupo da África e o Grupo pela Equidade). A proposta das nações em desenvolvimento estipulando o caráter vinculante do compartilhamento e a subsequente transferência de materiais e informações de sequência do PABS, que deveriam ser feitos apenas para usuários/destinatários identificados e registrados, foi desconsiderada. Além disso, a cláusula de repartição de benefícios descrita no Artigo 12.3(b) é injusta e desigual. De forma alarmante, o fornecimento de produtos de saúde por doações é restrito apenas a situações de pandemia, não abrangendo emergências de saúde pública de interesse internacional (PHEIC), e é extremamente inadequado para atender às necessidades dos países em desenvolvimento, que representam 83% da população global. 

Além disso, não há outros requisitos de repartição de benefícios não monetários no texto preliminar para lidar com o aumento da demanda durante uma PHEIC ou pandemia, o que anteriormente levava a um acesso altamente desigual, pois os suprimentos limitados eram rapidamente adquiridos pelas nações desenvolvidas (que por sua vez representam somente 17% da população mundial). Os compromissos e obrigações da repartição de benefícios exigidos dos usuários do sistema PABS propostos pelos países em desenvolvimento — como conceder licenças aos fabricantes dos países em desenvolvimento para aumentar rapidamente a produção; disponibilizar produtos de saúde a preços acessíveis a todos os países em desenvolvimento e cumprir o mecanismo de alocação da OMS; fornecer aos países afetados e aos estoques da OMS antes de uma PHEIC —  foram todos abandonados em favor de medidas voluntárias vagas e inconsequentes (Artigo 12.4). 

A linguagem do Artigo 12 é explícita no sentido de que os países em desenvolvimento devem ser compelidos a fornecer “compartilhamento rápido, sistemático e oportuno do material e das informações do PABS e de todas as informações relevantes” sem a garantia de mecanismos substanciais, justos e equitativos de compartilhamento de benefícios que forneceriam inequivocamente aos países em desenvolvimento a tecnologia e os produtos de saúde necessários para prevenir, preparar e responder a PHEICs e a pandemias. Isso está em franca oposição aos princípios de acesso e repartição de benefícios estabelecidos pelo Protocolo de Nagoya, sob o qual o Artigo 12.2(g) contraditoriamente determina que o Sistema PABS proposto esteja baseado.

  1. O artigo 20 estabelece um Mecanismo Financeiro de Coordenação, mas não define como se garantirá o acesso sustentável e previsível a recursos financeiros para a implementação do Acordo e do Regulamento Sanitário Internacional (RSI). O artigo negligencia a proposta de criação de um fundo dedicado especificamente para fins de implementação. Na ausência de financiamento adequado, as obrigações relativas à vigilância, Saúde Única e preparação tornam-se ainda mais onerosas. Os fundos existentes, como o Fundo Pandêmico do Banco Mundial, são responsáveis apenas por seus próprios órgãos governamentais. As prioridades definidas pelo órgão de governança do Acordo de Pandemias serão deixadas de lado e prejudicadas.  A falta de acesso a recursos financeiros não apenas impedirá gravemente os esforços de implementação, mas também exacerbará as desigualdades na prevenção, preparação e resposta à pandemia.
  1. A principal razão para a situação atual, ou seja, um texto altamente desequilibrado mesmo após um ano de discussões, é o caótico processo de negociação defeituoso liderado pelo Bureau da INB e pela Secretaria da OMS. Lamentavelmente, o Bureau e a Secretaria da OMS demonstraram uma inclinação maior para acelerar o processo em busca de um resultado superficial e injusto até maio em vez de priorizar um processo justo de negociação liderado pelos Estados Membros, tendo em vista um instrumento abrangente e equitativo que desencadeie a cooperação internacional em frentes cruciais, como tecnologia, finanças e acesso equitativo nos países em desenvolvimento.

Nunca houve nenhuma negociação baseada no texto conduzida pelos Estados Membros. Em vez disso, após cada sessão do INB, o Bureau, assessorado pelo Secretariado, emitiu uma nova minuta de texto em que eles decidiram unilateralmente quais propostas dos Estados Membros deveriam permanecer no texto e quais deveriam ser descartadas. A minuta do Acordo Pandêmico proposta que acaba de ser divulgada não é diferente, o Bureau e a Secretaria da OMS o prepararam. Incrivelmente, mesmo depois desse processo, os Estados Membros da OMS, especialmente os países em desenvolvimento, ainda estão sendo pressionados pelo Bureau do INB, pela Secretaria da OMS e pelos países desenvolvidos a aceitar a nova proposta de minuta do Acordo sobre Pandemia dentro de 8 dias de negociação que se dará no INB 9. 

Tendo em vista o processo profundamente falho do INB e o texto injusta e distorcido do Acordo de Pandemias, pedimos encarecidamente ao Brasil que 

(1) não endosse o Acordo Pandêmico proposto e insista em uma negociação efetivamente textual liderada pelos Estados Membros. Os Estados Membros também devem evitar os vários grupos de trabalho intergovernamentais simultâneos ou processos paralelos, dadas as capacidades e os recursos limitados dos países em desenvolvimento; 

(2) reconheça que o texto do Acordo sobre Pandemia, conforme atualmente proposto pelo Bureau e pelo Secretariado, é um mau negócio para os países em desenvolvimento e que o Brasil deve buscar um acordo mais justo e equitativo que seja do interesse dos países em desenvolvimento, ou seja:

(a) assegurando que as medidas de vigilância sejam limitadas em seu escopo, com base nas capacidades, circunstâncias, leis e evidências científicas nacionais. A coordenação multissetorial deve ser tratada pelas autoridades nacionais. As obrigações/exigências/iniciativas de “Saúde Única” em nível internacional devem ser rejeitadas. 

(b) fornecendo salvaguardas para evitar o uso indevido de dados por meio de regulamentações adequadas sobre a utilização de dados obtidos das Partes no âmbito do Instrumento Pandêmico por outros Estados Partes, pela OMS e por outras organizações internacionais.

(c) garantindo que o Acordo sobre Pandemias ofereça acesso sustentável e previsível a produtos de saúde nos países em desenvolvimento, facilitando a produção geograficamente diversificada por meio de obrigações legais sobre a transferência de tecnologia, especialmente de tecnologias financiadas com recursos públicos para os países em desenvolvimento, bem como medidas que abordem as barreiras relacionadas à propriedade intelectual sobre a produção e o fornecimento nos países em desenvolvimento. 

(d) priorizando um sistema abrangente de acesso e repartição de benefícios (PABS) que se aplique a patógenos que possam causar PHEICs e pandemias com base nas propostas dos países em desenvolvimento (Grupo da África e Grupo pela Equidade) apresentadas até o momento. Até que haja um sistema PABS em funcionamento, não deve haver compartilhamento de materiais biológicos ou informações de sequenciamento. As disposições relacionadas à vigilância (Artigos 4 a 6) também não devem estar operacionais. O sistema PABS também não pode ser considerado um instrumento internacional especializado sob o Protocolo de Nagoya até que tenhamos um sistema PABS totalmente funcional e operacional que ofereça com confiança uma repartição de benefícios justo e equitativo, garantindo acesso equitativo aos países em desenvolvimento durante uma PHEIC ou pandemia. 

 

(e) assegurando que o Acordo de Pandemia inclua um mecanismo de financiamento que apoie a implementação do instrumento a nível nacional e internacional, especialmente fornecendo assistência financeira aos países em desenvolvimento.

(f) listando explicitamente o papel da Organização Mundial da Saúde (OMS) na implementação do Acordo de Pandemia e enfatiza a necessidade de responsabilidade em relação às suas funções mandatadas na prevenção, preparação e resposta à pandemia.

Em solidariedade,

Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA)
Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI)
Associação de Gays e Amigos de Nova Iguaçu, Mesquita e Rio de Janeiro (AGANIM)
Casa A+
Federação Nacional dos Farmacêuticos (FENAFAR)
Grupo de Apoio à Prevenção da Aids no Rio Grande do Sul (GAPA)
Grupo Gayvota
Instituto de Defesa de Consumidores (Idec)
Internacional de Serviços Públicos (ISP)
Rede Brasil de Pessoa Idosa Vivendo Convivendo com HIV/AIDS
Rede Jovem Rio+
Rede Nacional de Pessoas que Vivem com HIV e AIDS – Pernambuco
Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV AIDS – Maranhão