Comentário sobre artigo da Folha de São Paulo “Quem responde pela piora dos doentes da hepatite C por atraso no tratamento? ”
Em artigo publicado esta semana na Folha de São Paulo pela jornalista Claudia Collucci, algumas informações sobre a distribuição de medicamentos para Hepatite C são apresentadas de maneira incompleta e parcial. Com base nas informações que reunimos ao longo do desenrolar deste caso, oferecemos aqui alguns comentários em nome do Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual (GTPI), coordenado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) no sentido de contribuir com a compreensão mais ampla do tema.
Em primeiro lugar, cabe abordar os “lotes parados no almoxarifado do Ministério da Saúde”. Trata-se de 2,2 mil tratamentos do medicamento sofosbuvir que sobraram da aquisição feita junto à empresa Gilead, ainda em 2017. O sofosbuvir não pode ser usado sozinho, pois precisa ser combinado com o daclatasvir. No entanto, no início de 2018, apuramos que já havia 5 mil pessoas com prescrição para serem tratadas com sofosbuvir + daclatasvir. Era necessário, assim, um processo de aquisição de ambos os medicamentos, uma vez que esses pacientes só poderiam tomar essa combinação. Desde este momento passamos a exigir do ministério um rápido encaminhamento para as compras.
O artigo menciona que houve “atrasos na licitação” e que, portanto, a compra só fora realizada em novembro. De fato, os atrasos existiram e foram lamentáveis, mas o artigo é impreciso ao afirmar que a compra em novembro foi apenas de daclatasvir, dando a entender que houve um intervalo de quase um ano entre a compra do sofosbuvir e a compra do daclatasvir. Essas informações não procedem. Ao mesmo tempo em que estava sendo comprado o daclatasvir estava em curso um pregão para a compra de sofosbuvir, em quantidades baseadas na fila de espera emergencial, até onde pudemos acompanhar.
Mais grave ainda, o artigo omite o que ocasionou os tais “atrasos” na compra de ambos os medicamentos. Por certo, houve momentos em que o Ministério da Saúde foi tomado por falta de resolutividade e agilidade, mas é igualmente importante pontuar a parcela de responsabilidade das empresas produtoras dos medicamentos. Em especial da empresa Gilead, uma das fabricantes do sofosbuvir, que moveu ao menos três ações (no TCU, na 8ª Vara Federal do Rio de Janeiro e na 14ª Vara Federal em Brasília) para impedir a entrada de concorrentes no mercado, fatos estes que vieram à tona na grande imprensa e outros meios de comunicação.
Com base em diálogos com atores do governo, notamos que essas ações adiaram os processos de compra do Ministério da Saúde em mais de uma ocasião. No nosso entendimento, essa conduta anticoncorrencial também requer uma “apuração e punição dos eventuais responsáveis”, pois também contribuiu para a situação dramática que os pacientes vivenciaram, já que esses medicamentos poderiam ter sido distribuídos desde julho/agosto quando foram iniciadas as negociações e ofertas de preço. Concluímos que esta guerra comercial é também um motivo pelo qual apenas 13 mil pacientes foram tratados em 2018.
Cabe destacar ainda que conforme a ata do pregão para a compra de sofosbuvir em novembro de 2018, a versão genérica saiu vencedora e tinha condições de realizar uma distribuição imediata, mas foi impedida por uma liminar obtida pela Gilead na 14ª Vara Federal, o que impediu a entrega de 12 caminhões com os medicamentos no almoxarifado do Ministério da Saúde, fato este noticiado pela Folha. Este drama demorou quase uma semana para ser resolvido.
O artigo também peca ao não exigir explicações da empresa Bristol Myers Squibb (BMS). De acordo com documentos divulgados pelo Ministério da Saúde, a BMS havia oferecido o comprimido de daclatasvir por US$ 7,5, na tomada de preços em julho e em novembro de 2018, aumentou o preço do medicamento para 20 dólares/unidade. Isso aumentou em muito o valor da aquisição da combinação sofosbuvir+daclatasvir e ainda por cima impôs uma distribuição fragmentada em lotes, que ficaram de ser enviados entre dezembro de 2018 e maio de 2019 para os 15 mil pacientes em maior necessidade e tempo de espera. Essa é uma das razões pelas quais, no momento, só há tratamento suficiente para um mês, conforme pontuado pelo artigo.
No caso do sofosbuvir, a situação alarmante é em relação aos 2,2 mil tratamentos que estavam estocados, pois os demais, comprados em novembro, ao que tudo indica já foram entregues em quantidades suficientes para as 15 mil pessoas e possuem validade longa.
Consideramos de extrema importância a atenção da mídia para com este episódio e com a agenda de acesso a medicamentos em geral. Esse é um caso extremamente complexo e deve ser tratado como tal. Ao mesmo tempo, defendemos que as apurações ocorram de forma imparcial e inclusiva, para que todos os pontos de vista tenham igual espaço.
O GTPI é um coletivo da sociedade civil que trabalha há 15 anos em prol do acesso a medicamentos no Brasil, defendendo o interesse público e a vida dos pacientes. Assim, nos colocamos a disposição para contribuir com o debate público sobre este e outros casos de relevo, defendendo o direito à saúde da população brasileira, a sustentabilidade do sistema público de saúde, e os direitos humanos de pessoas afetadas por enfermidades como HIV/Aids e Hepatite C.
Com imagem de Jota
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