NOTA DO GTPI – Replicamos aqui um trecho do artigo publicado pelo Grupo de Estudos do Direito Autoral e Industrial (Gedai/UFPR).

Acesse o artigo na íntegra aqui

(…) Importante recordar que até hoje o Brasil somente utilizou uma vez a licença compulsória, em 2007, para o medicamento Efavirenz utilizado para o tratamento do HIV/Aids que, por possibilitar a importação de versões genéricas produzidas na Índia e, posteriormente, com a produção pública em Farmanguinhos possibilitou uma economia de mais de USD 94 milhões[10].

Destaca-se que geralmente não há somente um pedido de patente por medicamento.

Existem estudos que apontam uma miríade de patentes protegendo o mesmo composto, seu processo de produção, uso, apresentação, etc; prologando, assim, o período de exclusividade da proteção, muito além do período de 20 anos a partir do depósito da primeira patente submetida.

Se analisarmos o cenário de um novo medicamento sendo testado para COVID-19 como o Remdesevir, desenvolvido pela Gilead Sciences, há, de acordo com a base de dados da Medspal[11], três pedidos de patentes depositados (outros devem estar em período de sigilo) e sua data de expiração será entre 2029 e 2031, a depender de quais pedidos de patente sejam concedidos.

Por outro lado, se analisarmos o Lopinavir/Ritonavir que é um medicamento já registrado desde 2000 para HIV/AIDS (formulação em cápsula mole) e em 2005 (formulação termo-estável) há pelo menos, até hoje, há patentes que expiraram em 2017 e ainda há patentes com litigio na justiça que, se for concedida em favor do depositante, terá validade até 2026.

Estes são somente dois cenários, que ilustram bem como as patentes podem representar uma barreira a longo prazo, para o fornecimento de versões genéricas mais acessíveis para a população, necessidade que é ainda mais urgente em caso de uma pandemia e recursos públicos escassos.

Os exemplos acima ilustram bem a necessidade de adoção de licença compulsória, para a garantia do acesso a esses e quaisquer tratamentos que sejam identificados para o tratamento da COVID-19.

Outro cenário que também merece uma análise detida são as patentes de segundo uso médico. Como observou-se acima, alguns medicamentos sendo testados já possuem indicações estabelecidas para outras enfermidades.

No entanto, há países que incluíram nas suas legislações nacionais, muitas vezes por compromissos advindos de Acordos de Livre Comércio, a obrigação de concessão de patentes para segundos usos de medicamentos já conhecidos. Ou seja, além dos 20 anos de monopólio já concedidos para a molécula inicial, seria concedido outro monopólio de 20 anos pelo simples fato de se verificar, num ensaio clínico ou prática clínica, que aquela molécula serve também para o tratamento de outra enfermidade.

Na doutrina há diversas críticas à essa proteção adicional, pois apesar de poder representar uma importante descoberta terapêutica ela não cumpriria com os requisitos de patenteabilidade, notadamente de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Países como a Argentina incluem na sua Guia de Exame de Patenteabilidade a vedação de concessão de patentes para segundos usos.

No Brasil não há proibição legal ao segundo uso de patentes, apesar de existir projeto de lei (PL 5403/2013) que visa qualificar como não patenteável e que há anos tramita na Câmara de Deputados por falta de iniciativa legislativa, mesmo sabendo-se que é o Estado quem acaba arcando com este ônus.

Por outro lado, a Diretriz de Exame do INPI não é clara em relação à vedação de reinvindicações de patentes, que contemplem o segundo uso de uma molécula já conhecida, acarretando um grande risco de uma retirada do domínio publico destes medicamentos, não só no País, mas em diversas jurisdições possa representar uma barreira para o acesso aos futuros tratamentos para a COVID-19.

A questão de acesso a medicamentos e insumos de saúde para o enfrentamento do COVID19 não é um desafio simples. A licença compulsória e a garantia de que não sejam concedidas patentes de segundo uso são ferramentas essenciais em um arsenal de medidas que devem ser adotadas para a garantia do acesso a tratamentos para a COVID-19. Além do desafio das barreiras de patente há questionamentos imediatos sobre a capacidade da indústria farmacêutica de, na conformação atual, dar conta da demanda de insumos e materiais de saúde e medicamentos para a proteção da população e dos profissionais de saúde. Assim como há a legitima preocupação dos pacientes, que atualmente fazem uso das medicações acima listadas de que o medicamento, muitas vezes de uso contínuo, que fazem uso diariamente seja direcionado para atender a demanda da COVID e falte para eles.

E, por último, encerro este breve artigo com uma reflexão essencial. Optaremos como coletividade por nos calar ou faremos valer a primazia da vida humana e da saúde acima dos interesses comerciais? Pensaremos na coletividade e em prol do bem comum ou da manutenção do status quo? Quais serão os valores e atitudes que serão a marca da resposta nacional e mundial à essa pandemia? Como coletivamente gostaríamos que a história da humanidade julgue a nossa sociedade ao analisar as posições tomadas nesse período dramático da civilização humana? Será um novo Holocausto em que as futuras gerações se perguntarão como foi possível que fossem feitas escolhas tão drásticas e erradas, ou será um momento em que a humanidade provará o seu valor com a primazia do coletivo sobre o individual?

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O autor, Francisco Viegas Neves da Silva, é pesquisador do Gedai/UFPR, advogado. Mestre em Direito pela UFSC. Bacharel em Direito pela UCPEL. Consultor de Policy Advocacy da DNDi- Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas.

[10] Viegas Neves da Silva, Francisco ; et al. Compulsory License and access to medicines: economic savings of Efavirenz in Brazil (2012). Oral presentation at the XIX International AIDS Conference, Washington, 2012. In: Abstract book of XIX International AIDS Conference.

[11] www.medspal.org