Antes que um novo medicamento seja aprovado para uso humano, ele deve passar por processos rigorosos de pesquisas. Isso seria impossível sem a participação voluntária de pessoas dispostas a doar seu próprio corpo para o avanço da ciência e da saúde. No entanto, muitas vezes os resultados dessas pesquisas não são revertidos em ganhos para o público em geral, e nem para os participantes que contribuíram diretamente para a geração dos dados. Uma nova proposição de lei recentemente aprovada pelo Congresso Nacional limita um importante direito dos participantes de pesquisas: o de ter acesso gratuito ao medicamento testado, caso ele demonstre ser melhor do que outros tratamentos disponíveis.

A lei segue para sanção presidencial, e o presidente Lula tem a oportunidade de vetar retrocessos no acesso pós-ensaios e no sistema de ética em pesquisa em seres humanos, deixando claro que participantes de pesquisas clínicas não são cobaias humanas e devem ter seus direitos garantidos!

No último dia 23 de abril, o Senado aprovou o Projeto de Lei – PL 6007/2023 (que tramitou na Câmara dos Deputados sob o nº 7082/2017, e inicialmente no Senado sob o nº 200/2015), que dispõe sobre a pesquisa com seres humanos. A proposição de lei foi enviada para sanção presidencial, com prazo para manifestação até o dia 28 de maio. Caso o Presidente não se manifeste nesse período, o texto entra em vigor na forma em que foi aprovado pelo Congresso. Ou seja, cheio de retrocessos.

Não por acaso, o PL teve origem em uma demanda da Interfarma, associação que representa no Brasil as maiores empresas farmacêuticas multinacionais. A indústria farmacêutica é a principal interessada na manutenção dos retrocessos aprovados no Congresso. Por exemplo: o texto aprovado delega a decisão sobre o acesso para o participante após o término do ensaio clínico ao pesquisador e patrocinador da pesquisa. Isso é um evidente conflito de interesses, que põe em risco o direito do participante. Além disso, são agregadas condições rigorosas para que o acesso pós-ensaio seja fornecido, limitando um direito adquirido do participante.

Outro retrocesso significativo é a retirada das atribuições da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), órgão do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que historicamente tem atuado na defesa dos direitos dos participantes de pesquisas clínicas no Brasil. Desde 1988, o CONEP tem protegido nossa população de potenciais abusos do poder econômico, assim como de abusos que podem ser cometidos em nome da ciência. Nesse período, diversas resoluções foram aprovadas sobre o tema, com ampla participação da sociedade. Desconsiderar toda a experiência acumulada pelo CONEP e transferir suas funções a um novo órgão ainda a ser constituído e regulamentado posteriormente, coloca em risco a proteção dos participantes em pesquisa e as considerações sobre os benefícios gerados pela realização de pesquisas clínicas no país.

Hoje no Brasil existe um sistema de proteção ao participante de pesquisa que está em consonância com as mais avançadas regras internacionais de ética em pesquisa. O país é signatário e histórico defensor da Declaração de Helsinque, a qual instituiu o princípio da beneficência, que determina que os benefícios da pesquisa têm de ser superiores aos riscos ao sujeito de pesquisa; e que seja continuada a oferta de medicamentos para os sujeitos de pesquisa, entre outras obrigatoriedades.

A Declaração de Helsinque tem caráter universal, tendo seus princípios de ser aplicados a todos os países do mundo, sem distinção. Além disso, o direito de “desfrutar dos benefícios do progresso científico e suas aplicações” é um direito humano estipulado no artigo 15 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que entrou em vigor em 1976.

Mais de 40 organizações da sociedade civil, incluindo a ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) tem se manifestado em oposição ao referido projeto de lei, igualmente reivindicando o veto de elementos chave da referida proposta legislativa.

Médicos Sem Fronteiras (MSF) tem historicamente lutado pela ampliação do acesso a medicamentos e tecnologias médicas, pelo aumento da transparência de ensaios clínicos e pelos direitos daqueles que participam deles. Para que os participantes de pesquisas clínicas tenham seus direitos garantidos e por um sistema de ética em pesquisa voltado a assegurar o acesso aos benefícios gerados e não os interesses econômicos dos financiadores, solicitamos que o presidente Lula vete tanto a retirada das atribuições do CONEP (art. 2º, XXVI), quanto a retirada do direito ao acesso pós-ensaios clínicos (arts. 31, 32 e 33).

Existem também disposições problemáticas que devem ser vetadas, referentes ao armazenamento e envio de material biológico para o exterior (art. 48 e 51) que deferem à legislação do exterior a disciplina do referido material, sem considerar nenhum dos direitos contidos na legislação brasileira para os participantes dos ensaios clínicos realizados no país. Por todas essas razões, é tão importante que essa iniciativa não seja implantada.

Francisco Viegas

Assessor de Política e Inovação em Saúde da Campanha de Acesso de MSF

Marcela Vieira

Assessora regional para América Latina da Campanha de Acesso de MSF

Via Médicos Sem Fronteiras (MSF)