Rearticular, insistir nas proposições e aproveitar o momento de fragilidade institucional para avançar por meio de investidas no campo do direito e com disputa de narrativa, foram os temas de destaque na última sexta-feira (29), no simpósio 10 Anos da Licença Compulsória do Efavirenz. O evento foi realizado como evento satélite do 11º Congresso de HIV/Aids e 4º Congresso de Hepatites Virais (#hepaids2017), em Curitiba, pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) e Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI).
Para debater os caminhos para a garantia de acesso a medicamentos, o evento teve a participação do ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão; da ex-coordenadora do GTPI, Renata Reis e do representante da Abia, RPN+ e GIV, Jorge Beloqui.
A ex-coordenadora do GTPI ressaltou que no atual contexto, o caminho para a sociedade civil está em propor, resistir e se articular em torno dos interesses convergentes. “Não há luta solitária neste tema dos medicamentos, há uma luta coletiva que precisa envolver outros movimentos, patologias, países. A resposta virá de um ambiente coletivo”, avaliou Renata Reis.
No atual ambiente de ruptura democrática, Reis aposta que judicializar as reivindicações pode ser um meio de fortalecer a luta pelo acesso a medicamentos com base nos princípios dos direitos humanos. “Nossas instituições no Executivo, Legislativo e Judiciário estão todas muito frágeis, mas precisamos encontrar uma forma de administrar as coisas, por isso acredito que podemos explorar estes espaços principalmente o Judiciário”, avaliou.
O ativista Jorge Beloqui, que apresentou uma memória das ações da sociedade civil na época da Licença Compulsória, também considerou que os movimentos sociais precisam estar organizados e têm como tarefa insistir nas reivindicações. “Temos que nos fazer ouvir mesmo que este governo não seja permeável às reivindicações e devemos também nos preparar para as próximas eleições e para a passagem de governo”.
Beloqui afirmou que o momento demanda atenção e análise considerando que as perspectivas não estão totalmente claras. “Estamos começando ver o início do desastre que vai se armar com esta ‘lei do teto’ e a situação orçamentária que estamos vivendo”, disse, referindo-se à PEC 241 (posteriormente EC 95), que congelou os investimentos públicos em saúde por 20 anos.
A batalha do Efavirenz
Convidado de honra da mesa com o tema “Recuperando Elementos Históricos”, o médico sanitarista e ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, lembrou de toda a complexidade do processo que envolveu a Licença Compulsória do Efavirenz, medicamento parte do tratamento do HIV, consolidado em 2007. “No dia seguinte que eu tomei posse tomei conhecimento do problema do Efavirentz, da grande mobilização das entidades e todo o movimento envolvendo pacientes e a luta por direitos”.
Na época, o valor cobrado pelo laboratório Merck, dos Estados Unidos era de US$1,59 por comprimido, quando na Índia o mesmo medicamento custava US$ 0,45. Cerca de 40% dos pacientes em tratamento de HIV/Aids utilizavam o medicamento no Brasil.
No decorrer do processo de negociação, a Merck chegou a oferecer redução de 30% que reduziria o preço por comprimido para US$1,10. “Nós queríamos R$ 0,65 como mínimo pra discutir que era o valor que a Tailândia pagava, por isso, desde o início montamos uma estratégia muito sólida para realizar o licenciamento compulsório, por perceber que não haveria acordo”.
A única Licença Compulsória emitida pelo país até aqui, foi definida pelo ex-ministro como resultado do envolvimento de setores da inteligência do governo e uma estratégia ampla envolvendo ministérios, Advocacia, Itamaraty, Tribunal de Contas da União (TCU), Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi), Fiocruz, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o apoio incondicional do então presidente Luís Inácio Lula da Silva.
Temporão ressaltou ainda o trabalho em caráter “obssessivo” que protegeu a medida com todas as garantias, evitando a sua judicialização e beneficiando imediatamente milhares de pessoas, incluindo garantias do fornecimento dos genéricos com a Unicef e Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS) para evitar descontinuidades. “A Fiocruz também estava trabalhando na engenharia reversa pra produção por meio de uma parceria com três farmoquímicas de capital nacional. Tudo isso corria ao mesmo tempo”.
Pressões externas e cobertura da imprensa.
A emissão da portaria 886/2007 que decretou o Efavirez de Interesse Público em 24 de abril de 2007, etapa legal que antecede a Licença Compulsória, desencadeou uma série de pressões, lembrou o ex-ministro. “O embaixador dos Estados Unidos na época chegou a me telefonar 15 vezes por dia para mediar um acordo”.
Uma última oferta foi feita pelo governo brasileiro ao laboratório para comprar o Efavirentz a R$ 0,45 por comprimido, mas com a recusa, em 4 de maio o presidente Lula assinava o decreto no. 6.108/2007 oficializando a Licença Compulsória.
Temporão destacou ainda o tom da cobertura da imprensa especializada brasileira sobre o episódio, que teve uma grande e positiva repercussão mundial. “Era um discurso meio dúbio, ao mesmo tempo em que diziam que os pacientes estavam felizes, alegavam que a medida poderia complicar o cenário economico com retaliações comerciais e a inviabilização de novos negócios”.
O ex-ministro explicou que a Licença Compulsória não só surpreendeu a Merck como gerou um efeito contrário à expectativa projetada pelos veículos de comunicação, tendo como efeito imediato uma corrida de laboratórios procurando o ministério pra oferecer descontos de 50 a 60%.
Além disso, Temporão explicou que a medida também foi fundamental pra deslanchar a política do complexo econômico industrial brasileiro, que consolida a visão da utilização do poder de compra do estado pra internalização da produção.
“Essa visão foi implementada por mim, pelo ministro Padilha e outros que deram continuidade, mas que neste momento temo que esteja ameaçada porque essa proposta se insere numa visão de desenvolvimento, soberania e da saúde num contexto mais amplo da sociedade que não está representada nesse governo que está vendendo o patrimônio nacional a um preço vil, Pré-Sal, hidrelétricas. Então há uma grande interrogação sobre o futuro dessa política”.
O papel decisivo da sociedade civil
Renata Reis Também contribuiu com o resgate histórico destacando o papel da sociedade civil na disputa de narrativa e na garantia de uma ampla base de apoio social e legal à medida. De acordo com ela “passávamos dias e dias convencendo jornalistas de que o que nós estávamos pedindo não era ilegal, foi uma disputa árdua porque todos diziam que não era possível pedir licença compulsória. Nós ouvíamos que isso é pirataria, é ilegitimo, é desobediencia, esse era o discurso que a gente enfrentava.” Reis também descreveu uma ação pioneira do GTPI de cobrar a licença compulsória via judiciário, usando um mandato de segurança contra a empresa farmacêutica e contra a união. A ação foi uma estratégia ousada de litígio para reforçar a defesa do uso da licença compulsória no Brasil. “A ação foi proposta no dia 1 de dezembro 2005 e no dia seguinte o GTPI saiu em todos os jornais desse país”, disse Renata. “A partir dali a sociedade civil passou a ser consultada e respeitada como ator neste debate”, concluiu.
O Ativista Jorge Beloqui por sua vez resgatou mobilizações desde o inicio dos anos 2000, focadas inicialmente em defender de pressões norte-americanas o artigo da lei brasileira que continha a licença compulsória e depois em cobrar o uso da medida pelo governo. Beloqui apresentou fotos historicas de marchas em frente ao consulado americano organizadas em São Paulo, Recife, Rio de Janeiro em 2001, inclusive com fotos dos ativistas vestidos de vampiros para simbolizar a atitude predatória das empresas farmaceuticas. Beloqui destacou mobilizações em São Paulo onde foram realizadas marchas com cartzaes dizendo “o movimento Aids adverte: patente faz mal à saúde” e “Sem quebra de patentes o SUS irá quebrar”. De acordo com ele o ato deve como desdobramento o envio de cartas ao então presidente Lula e uma serie de debates em espaços como Folha de SP e OAB.
Em suma, as ações da sociedade civil foram fundamentais para legitimar a licença compulsória como uma medida importante para as pessoas vivendo com HIV/Aids, para disputar a narrativa em torno do seu uso e para consolidar apoio suficiente, nacional e internacional, para que o governo pudesse avançar na estratégia apesar das pressões que sofria.
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