Matéria da revista Forbes sobre o Truvada expõe como a lógica capitalista define, de acordo com a possibilidade dos lucros, se um medicamento é disponibilizado ao público ou não. Independente do mundo passar por uma epidemia com alta taxa de mortalidade.

Leia a tradução na íntegra:

“A PrEP para prevenir o HIV não é uma oportunidade comercial”, dizia a gigante farmacêutica, que agora anuncia o produto em horário nobre na TV dos Estados Unidos.

“Estou na pílula”, declara uma mulher transexual em close, no último comercial de drogas da Gilead Science. “Mas não é controle de natalidade”, diz um jovem rapaz, com um sorriso em outra cena. Os atores estão promovendo o Truvada, a única droga aprovada para Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) capaz de prevenir a transmissão do HIV.

O comercial, apropriadamente intitulado “Estou na pílula”, faz parte de um impulso de marketing que ajudou a transformar o uso do Truvada como um blockbuster de US$ 1,3 bilhão (cerca de R$ 4.8 bi), quase 5% das vendas anuais da Gilead.

É uma grande inversão para a empresa que, há apenas três anos, chegou a informar que o uso do Truvada para prevenir a infecção pelo vírus causador da Aids não representava uma oportunidade comercial. Agora, o analista de investimentos da Raymond James, Steve Seedhouse, estima que a adoção do uso da droga para prevenção poderia gerar US$ 2,9 bilhões (R$ 10,7 bi) em vendas no ano de 2020, o que ainda não seria atrativo investidores, já que as vendas anuais do medicamento mais vendidos contra a hepatite C caíram 69% em 2015, correspondente a US$ 4,4 bilhões.

“Estou na pílula” apareceu em mais de 385 milhões de telas desde que foi ao ar pela primeira vez, no último mês de junho, segundo as análises de audiência da iSpot.TV, que estimou um investimento da Gilead na ordem de US$ 13 milhões (R$ 48,2 mi) para colocar o anúncio em horário nobre neste período, durante programas como The Late Show, com Stephen Colbert; Family Guy (a sitcom conhecida no Brasil como Uma Família da Pesada) e Pose, um programa com um grande elenco transgênero.

O Truvada foi aprovado pela primeira vez em 2004 como um tratamento para o HIV, não como preventivo. Foi a primeira combinação diária de medicamentos contra o vírus e seu sucesso fez da Gilead uma gigante da biotecnologia. As vendas globais anuais totais do Truvada atingiram o pico de US$ 3,57 bi (R$ 13,2 bi) em 2016. Outros US$ 2,6 bi (R$ 9,6 bi) foram gerados pela Atripla, uma combinação de Truvada e Sustiva, este da Bristol-Myers Squibb (BMS).

Mas no ano passado as vendas do Truvada caíram 12%. Entre os principais motivos estão a mudança dos pacientes para novos e melhores medicamentos e o fim da patente na Europa.

Em 2010, pesquisadores financiados pela Fundação Bill & Melinda Gates (a Gilead doou o placebo e as pílulas Truvada) apresentaram dados mostrando que o Truvada poderia reduzir o risco de infecção em 92% para pacientes que não tinham HIV, mas que estavam em risco de contrair. O uso, batizado como PrEP, causou uma agitação nos círculos de saúde pública, até que em 2012, o medicamento foi aprovado para prevenção pela agência reguladora de medicamentos nos Estados Unidos, a Food & Drug Administration (FDA).

A Gilead ficou orgulhosa. O diretor científico da empresa, Norbert Bischofberger, chamou isso de “a culminação de quase 20 anos de pesquisa”, mas a empresa não viu como promissor o uso do Truvada para evitar a infecção pelo HIV. Em 2013, o vice-presidente de Assuntos Médicos da empresa, Jim Rooney, disse à The New Yorker que a empresa “não via a PrEP como uma oportunidade comercial”. Em 2015, a porta-voz da Gilead, Cara Miller, reforçou à Bloomberg que não via a PrEP como uma oportunidade comercial e nem estava realizando atividades de marketing em torno do Truvada como PrEP.

Em 2014, havia apenas 22 mil usuários da PrEP, mas autoridades de saúde pública perceberam que mais de um milhão de americanos poderiam se beneficiar com o uso do Truvada. A cidade de Nova York lançou sua primeira campanha publicitária da PrEP em 2015, um ano após o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) divulgar sua própria orientação clínica recomendando o Truvada como PrEP. Outras cidades, como Washington D.C. e São Francisco, também lançaram campanhas de informação pública nos últimos anos (todas as três dizem que não receberam financiamento da Gilead para suas campanhas).

No ano passado, a farmacêutica começou a comercializar o Truvada nas mídias sociais e em aplicativos de encontros como Snapchat, Tumblr e Grindr. O resultado é que atualmente o número de usuários de Truvada para PrEP superou o número de pacientes tratados com Truvada para HIV. A Gilead revelou em julho, que 180 mil pessoas estavam tomando o Truvada para a PrEP durante o segundo trimestre, o que, segundo análises da Seedhouse, representou cerca de US$ 500 mil (R$ 1,8 mi) em vendas.

“Eles realmente começaram a sofrer pressão em muitas linhas de negócio, por isso faz sentido o porquê de serem mais agressivos na tentativa de indicar o Truvada para outros segmentos”, diz o analista da Piper Jaffray, Tyler Van Buren.

O Truvada terá a patente expirada nos EUA em 2021. A Gilead está desenvolvendo uma outra droga para sua substituição chamada Descovy e está comparando as duas drogas por meio de um ensaio clínico de Fase 3, que deve ser concluído em 2019. Ainda assim, a patente do Descovy vai durar até 2022.

A Gilead recusou pedido de entrevista para este artigo. Em comunicado, a empresa informou que desde 2002 gastou US$ 100 mi (R$ 371 mi) em doações para organizações comunitárias que atuam na conscientização sobre a prevenção do HIV. Também apontou que muitas pessoas não percebem que estão em risco de infecção pelo vírus. “A publicidade na TV é uma evolução natural dos esforços para educar as pessoas sobre os fatores de risco e o que eles podem fazer para se proteger”, diz a empresa.

O diretor executivo da Global Advocacy for HIV Prevention (AVAC), Mitchell Warren, concorda de todo o coração e fez apenas uma reclamação sobre o anúncio de PrEP da Gilead. “Na minha opinião, são seis anos tarde demais”, lamentou. A AVAC é uma organização sem fins lucrativos sediada em Nova York que promove a prevenção do HIV.

Traduzido da Forbes